segunda-feira, 26 de junho de 2017

A CULPA QUANDO PODEMOS FINALMENTE FAZER O QUE QUEREMOS

Minha mãe foi um grande exemplo que eu luto para seguir. Engraçado isto, mas é fato que tento e nem sempre é tão fácil assim. Ela soube muito bem lidar com a solidão. Claro, eu e meu filho morávamos com ela, mas vivíamos ocupados com nossos trabalhos e nossos pensamentos. Ela por seu lado soube muito bem ocupar seu tempo e nunca em momento algum a vi se queixar de solidão ou mesmo dar sinais de solidão. Vivia contente com seus pequenos afazeres. 

Me dei conta disto um dia após sua morte em que estava olhando suas revistas de tricô e tinha uma caixa de camisa repleta de recortes de comidas que ela recortava das revistas para depois ir colando em seus cadernos de receitas. Este era um de seus passatempos. Ela gostava de copiar receitas, anotar as que aparecem nos programas de culinária na TV, recortava receitas de revistas. E depois ia experimentando. Eu e meu filho algumas vezes fomos cobaias rsrsrs. E tínhamos que aguentar a cara feia caso não nos apetecesse o prato. 

Ela também fazia tricô, crochê, assistia muitos filmes, lia, gostava de passear, ir a restaurantes, gostava de plantas, de olhar lojas, de ir ao supermercado e não perdia nunca o tour de France na TV, para ver as paisagens. Gostava de assistir futebol, principalmente a Copa. Ela já não costurava, devido os olhos. Nunca quis operar a catarata, tinha medo. 

Eu aprendi com ela estas artes manuais. O que é difícil para mim é me dar o direito de passar as tardes fazendo isto, puro lazer, ócio, divertimento. Então me dou conta de como somos manipulados pelo sistema de produção - produzir, produzir, dinheiro. Isto é ser útil, isto é fazer algo que preste. Estou num momento em que passei a trabalhar meio período e tentando elaborar este direito, esta liberdade de ter as tardes livres para não fazer "nada". Aí é que está, nada! como assim, nada? Tricotar, cuidar do jardim, da horta, sair passear, ver um filme, ler um livro, pintar, desenhar, costurar é não fazer nada? Só porque isto é feito para si mesmo? não é trabalho? Só porque não é rentável? 

Minha mãe não trabalhou fora, ela era do lar. Talvez isto tenha ajudado a ser mais fácil lidar com a solidão. Ela continuo fazendo o que sempre fez. Eu estou tendo que mudar meu ritmo, minha forma de passar o dia. E fico me cobrando coisas como independência financeira, liberdade, ser produtiva. Eu ganho a vida trabalhando meio período de segunda à sexta. Então qual é o problema? Como posso me cobrar desta forma? como me libertar disto? 

É tão difícil que muitas vezes tenho crises de ansiedade por isto. Quero fazer, me culpo, me cobro, e não faço nada. E então me cobro mais ainda. Este é o preço por vivermos numa sociedade do consumo, onde comprar é a suposta satisfação por ter que trabalhar como loucos, produzir e produzir. Então no final de semana nos recompensamos indo ao Shopping e comprando. E ainda pensamos que isto nos faz feliz, e a sensação de felicidade acaba no dia seguinte. E voltamos ao Shopping. 

Mas o que é mais grave, podemos ter consciência disto tudo, e inclusive ser contra tudo isto, mas de repente nos damos conta que o sistema está no nosso inconsciente e rege nossa vida. Temos que ser produtivos até morrer. Não estou dizendo aqui que não devemos ser produtivos até morrer, admiro Oscar Niemeyer, Lévi-Strauss e todos os outros que continuaram trabalhando até a morte, desde que estivessem felizes fazendo isto, e felizes consigo mesmos. 

Mas o que digo é que não somos preparados para curtir uma merecida aposentadoria, ou um tempo de ócio criativo. A sociedade mesmo despreza este período da vida, considera os velhos inúteis, um peso, sem capacidade de fazer escolhas, um alto custo para a sociedade seja na saúde ou na previdência. Agora quando se é mais novo e se tem a oportunidade de viver com menos e ter mais tempo  a culpa se apresenta. 

Elaborar esta passagem não é fácil. É fato que é um ciclo de nossas vidas que está se encerrando, um ciclo que no fundo devíamos até ficar felizes de que acabou, quantas vezes quando estamos trabalhando sonhamos com o momento em que poderemos fazer o que queremos? ter tempo? E quando ele chega, eis que não sabemos o que fazer, nos sentimos culpados por ter tempo, nos sentimos sendo criticados, estamos fora do círculo produtivo. Mas será que estamos mesmo? ou apenas iremos produzir e criar outras coisas? 

O conceito que pesa é que produzir significa dinheiro e lucro. Mas produzir não se trata apenas disto. Quando preparamos um almoço para a família isto é produzir. Quando fazemos uma manta em tricô, é produzir, quando pintamos um quadro, é produzir, quando plantamos uma horta, é produzir. Quando ouvimos os filhos e netos, os amigos, estamos criando laços, afetos, possibilidades. Quando lemos um livro ou vemos um filme criamos novas ideias e possibilidades e podemos com isto ajudar ao outro ou a si mesmo. Tudo é movimento e criação. 

Mas o mais importante é pensar que trabalho não precisa ser o que o sistema nos diz que é. Trabalhar é muito bom, é saúde, é troca, é convivência, são relações. Apesar de que no mundo de hoje tudo isto está difícil de ocorrer, ou pelo menos não é mais como antes. Cada vez mais estamos ocupados, estressados, ansiosos e ligados no mundo virtual. Então tudo isto torna difícil ver o trabalho de outra forma. Não queremos voltar a este sistema, mas não conseguimos ficar em paz e usufruir do tempo com prazer e satisfação, e acabamos deprimidos. 

Precisamos elaborar dentro de nós um novo conceito de trabalho. O trabalho é algo prazeroso, não precisa ser ditado pelo sistema, pode ser feito em casa também, pode ser criativo, pode ser manual, pode ser longe de um computador. O trabalho pode ser criar algo com prazer. O trabalho pode ser feito com amor e dedicação. O trabalho pode ser compartilhado, coletivo e não competitivo. Não precisa ser ditado por horários e resultados, não precisa ser sob pressão. O trabalho deve gerar algo, mas acima de tudo deve nos manter saudáveis. 

E devemos aprender a nos permitir sermos felizes, nos permitir fazer o que desejamos com o tempo que precisamos para fazê-lo, sem estress, sem pressões. Sair do que nos foi imposto desde Descartes, Bacon, com a metodologia científica e cartesiana. Prazos, metas, resultados, avaliações. 

Eu recentemente criei ou recriei a Cravo e Canela artesanatos. De repente me dei conta que a transformei numa empresa igual ao sistema e isto me afetou muito. Quando comecei era uma forma de lazer, prazer, de criação, de expressão que poderia ser rentável. Mas o que ocorreu foi que comecei a me cobrar prazos, me estressar para ir correndo encontrar a peça solicitada, querer ter estoque, querer produzir sem parar para ter peças, ter que ficar fazendo controles financeiros o que no fundo sou péssima em fazer. Eu tinha prazos para resposta na loja, prazos para entrega, e tudo isto foi me consumindo e acabou com meu lado criativo, lá estava eu produzindo em série as mesmas peças sempre, pois eram as que vendiam. Preocupada com as avaliações que deviam ser positivas para que a loja prosperasse, preocupada com as críticas dos outros.  Eu queria que ela se transformasse em independência financeira, mas acabei foi tolhendo minha liberdade e criatividade. E sofri um bloqueio. Não conseguia mais pintar. Perdi o prazer, a expressão, a liberdade. Não era isto que eu queria. Como sou uma eterna rebelde a forma que esta se expressou desta vez, talvez pela idade rsrs, foi um estado depressivo, um bloqueio ao invés dos gritos e revoltas da juventude. Eu sempre gostei da maneira francesa de falar da depressão - ao invés de dizerem sofreu ou teve ou tem depressão, eles dizem - fez uma depressão. Sim, muitas vezes a depressão é uma forma de revolta, de dizer não a alguma coisa da qual não nos damos conta. É uma forma de parar. E aí mais uma vez pesa a culpa e a cobrança externa. Com uma depressão temos a desculpa para parar. E a fazemos inconscientemente. Paramos o tempo. 

Passaram-se dois meses, diminui meu ritmo, dei um stand by na loja atendendo apenas vendas com as peças que tinha prontas. Durante este tempo refleti, me avaliei e analisei. Me dei conta que gosto do trabalho que chamo "orgânico" sem pressões, corridas contra o tempo, stress. Mas isto eu posso coordenar. Aprendi a dizer não em algumas situações ao invés de querer abraçar o mundo de uma vez só. Aprendi a ter prazos maiores quando necessário para fazer o trabalho. Aprendi a não me deixar levar pela ansiedade do outro. Sempre defendi e tinha por princípio o atendimento excelente. E agora vejo que apesar de ter mudado a forma de trabalho continuo tendo um atendimento excelente.

Aos poucos fui aprendendo e remodelando minha vida e o atelier. Vou escrever sobre este processo em outra postagem. Mas a grande lição foi ver o quanto a culpa nos adoece. Dias atrás eu estava numa roda de mulheres e ao ouvi-las me dei conta que não sou só eu. Muitas ali também sentiam esta culpa, até mesmo de dar uma parada no meio da tarde para poder tomar um café sossegada e sentir o sol na pele. Então resolvi escrever este texto. Espero que possa ajudar a outros. 


imagem retirada do Google. 

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