domingo, 28 de dezembro de 2014

PROJETO - MINHAS PAIXÕES

PROJETO - MINHAS PAIXÕES

Há temas que me atraem imensamente, desejo de conhecer, ver de perto, ouvir, tocar, cheirar, compreender e conhecer. Por isto vou iniciar uma busca de informações, relatos, histórias, livros, filmes sobre tudo que mexe muito comigo. São os seguintes temas:

- Idade Média - as cidades medievais e sua arquitetura, as lendas, as histórias.
- Catedrais - sou apaixonada por catedrais, principalmente as góticas e as de estilo neoclássico
- Igrejas - as barrocas e as pequenas capelas
- Arte indígena
- Tear
- Ex-votos
- Cerâmica
- Museus
- Arte Rupestre
- As Beguinas
- Os Místicos
- História da América Latina
- Incas - Astecas e Maias
- Cemitérios
- Formas de protestos e reivindicações como as Madres da Praça de Maio, ou as Arpilleras do Chile
- A arte local e seus significados como as Carrancas por exemplo
- Rituais
- Festas culturais
- Folclore
- Tibete
- Conventos e Abadias
- Lendas locais
- Arqueologia
- História

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

FILMES E LIVROS - A VELHICE


GOLDENBERG, Mirian. Record, 2013
128 páginas

O que é estranho é que não sentimos que estamos envelhecendo, parece que estamos dentro de nós mesmos e não temos a consciência do que o outro vê, até que um dia uma mulher jovem te chama de senhora como me aconteceu ao entrar na locadora e um casal em torno de seus 25/30 anos vinham também em direção à porta. A mulher então disse: deixe a senhora entrar primeiro. Foi um choque! cadê o deixe a moça entrar, a mulher entrar, deixe ela entrar. Tentei me consolar dizendo que era apenas uma questão de educação, afinal eu sou uma desconhecida para ela. Mas eu sabia que não era só isto.

Não que eu seja velha, acho que 53 anos ainda é uma idade de maturidade, mas não de velhice. Mas vivo numa cultura onde não se cultua e homenageia-se os ancestrais e os idosos, pelo contrário, velhos atrapalham, são lerdos, não sabem de nada e acabam se tornando um fardo. Mesmo que no real o que vemos hoje são muitos avôs e avós ajudando a sustentar famílias com suas aposentadorias e ainda continuar a trabalhar para aumentar a renda. Mas há outros preconceitos como o de que velho não faz sexo, não devia sair por aí se divertindo, deve se colocar em seu lugar, mas que lugar é este?

O que me aconteceu foi um alerta para que eu me preparasse para o que vem pela frente, a menos que eu morra antes. Sim, eu já tenho muitos cabelos brancos, já não tenho a mesma agilidade de antes, mas estou viva e com muita vontade de viver, e com prazer. A velhice é associada a doenças, a ficar em casa, a ser uma pessoa que é retrógrada e que não acompanha o mundo. O que é triste é quando a pessoa internaliza isto e realmente acredita que tem que ser assim. Mas não precisa ser assim. Foi quando aprendi que só existem duas idades: vivo e morto.

Da mesma forma que um bebê não sabe andar e precisa de ajuda para muitas coisas, o que é limitante, o velho também tem limitações, físicas, não psicológicas ou mentais. A menos que ele sofra de algum problema sério de saúde. Não consegue mais escalar o Everest é óbvio, mas ainda pode fazer caminhadas e até mesmo subir por trilhas nas montanhas.

O pior é quando os outros pensam que o velho não pode mais ter autonomia, dizem na linguagem popular que é gagá. E não aceitam que ele tome decisões, faça escolhas, determine como seja sua vida e o que vai fazer. A idade não lhe tira a inteligência, a capacidade de gerir sua própria vida e nem seu desejo e prazer.

O livro de Mirian Goldenberg nos fala disto, de como podemos envelhecer tendo uma vida boa, prazerosa, saudável, bonita e cheia de vida.

Mas assistindo filmes é que notamos o preconceito, a maneira como se tratam os idosos, de como eles são desconsiderados, e não precisa ter 90 anos não, os filhos costumam achar que mães com 50 anos já precisam ser cuidados e dirigidos. Costumam vigiar e controlar os passos.

Ao contrário da cultura oriental que veneram os idosos e respeitam e buscam sua sabedoria, a nossa parece querer se livrar dos velhos, e talvez porque não suportem ver o seu real para daqui a alguns anos.

A questão da velhice também entrou na minha vida um pouco antes da mulher da locadora. Minha mãe com mais de 80 anos, cardíaca, passou a necessitar de ajuda para tomar banho, precisou de cadeira de rodas para se locomover, pois tinha muita falta de ar. E eu me defrontei com a velhice dela, que já não era mais a minha mãe forte, que fazia mil coisas. Percebi e a ouvi falando do quanto é difícil e triste depender dos outros. Posso imaginar o que seja isto para alguém que sempre fez o que quis. Ela era lúcida, e sempre respeitamos suas opiniões, e quando chegou a hora de ir ver sua irmã na Europa que não via há mais de 30 anos nenhum de nós iria se opor a decisão dela, de correr o risco de ir, mesmo sabendo que poderia não voltar. Mas ela voltou, mesmo me dando um susto imenso no avião, ela chegou ao Brasil e ainda viveu um ano e meio.

Para enfrentar tudo isto assisti vários filmes, e quero recomendar alguns:

Começando pelo belíssimo Elsa & Fred - um amor de paixão 

Direção: Marcos Carnevale - 2005
Duração: 108 min
Título original: Elsa Y Fred 

Dois octogenários. Fred (Manuel Alexandre)  viúvo há 7 meses, sempre teve uma vida muito organizada, trabalhou 40 anos na Telefônica, tudo sempre muito certinho e correto. Elsa (China Zorilla) , bom não é possível saber ao certo, ela tem uma imaginação febril, conta histórias, inventa.
Os filhos querem cuidar dos pais, mas são como Elsa chama o filho: a policia! controladores.

Elsa cria seu mundo, ela quer fugir do controle, do organizado, do previsível da vida. É divertida, seu carro é vermelho, ela ouve música enquanto dirige, seu celular é pink, dá calotes, fala muito. Talvez uma forma de lidar com a desilusão da vida. Ele que vivia na tristeza é capaz de se abrir novamente, ou talvez, pela primeira vez, à vida.

Elsa não se entrega, e quer muito viver um sonho que tem desde jovem. Ela ama a vida e para vivê-la é capaz de tudo. Fred que sempre foi parado, certinho irá se encantar com a vida pulsante de Elsa. Claro que os filhos ficarão apavorados, assustados diante do namoro dos dois. Mas eles farão a vida valer a pena até o último minuto.

Recentemente eu estava em Buenos Aires e o celular do motorista de táxi tocou, ele olhou e disse: la policia! não me contive, tive que rir.

Este filme me ensinou que idade não é limite para os sonhos, mesmo aqueles da juventude. O amor pode acontecer em qualquer idade, e que a alegria de viver é sempre possível, mesmo diante da doença ou da velhice.

- O exótico Hotel Marigold 


Direção: John Madden - 2011 
Duração: 124 min 
Título original: The Best Exotic Marigold Hotel 


Sete idosos britânicos, um casal, uma viúva, duas solteiras, dois solteiros  resolvem ir para um Hotel para aposentados na Índia iludidos pelo anúncio. Claro que o que encontram é bem diferente do que foi oferecido.

O filme nos fala do antes, de como estavam suas vidas na Inglaterra e depois o que irá se passar neste exótico Hotel, nos mostrando o quanto é difícil ser idoso na sociedade que cultua os jovens, mas também o quanto se pode ainda aproveitar a vida.

Aos poucos cada um deles irá adquirindo uma liberdade que não tinham  e podendo realizar coisas que nunca puderam fazer antes, o que nos mostra o quanto a velhice muitas vezes é algo prazeroso e senão isto, pelo menos pode nos trazer uma liberdade que não tínhamos antes. Vemos o preconceito que também tem os mais jovens, os filhos destas pessoas que tomam decisões por eles sem consultá-los, que os exploram seja pelo dinheiro ou para cuidar de filhos, que não levam em conta que apesar de idosos estão vivos e tem desejos.

Aqui o grande aprendizado é que a velhice pode ser tornar justamente a grande liberdade. Filhos criados, aposentados, vivos e sem ter o que fazer, é justamente a oportunidade de se fazer o que sempre se desejou e nunca fez. É hora de tomar coragem e acertar coisas antigas que sempre foram adiadas por falta de tempo, por vergonha, por falta de coragem. É hora de vencer as mágoas e transformar o que se sabe em coisas novas. É hora de aprender algo novo para trabalhar e ganhar uma independência maior, e a sabedoria pode vir em sua ajuda. É hora de assumir seu desejo e ir atrás.

- Uma dama em Paris 

Direção: Ilmar Raag - 2012
Duração: 94 min
Título original: Une Estonienne à Paris 
Filme franco estônio belga 

Anne (Laine Mägi) deixou seu trabalho na casa de idosos para cuidar de sua mãe até sua morte. Seus filhos tem sua vida e ela está só agora quando recebe uma proposta de trabalho em Paris para cuidar de uma estoniana que emigrou para lá há muitos anos. Ela aceita e deixa a Estônia rumo à França.

Aconteceu que Frida (Jeanne Moreau) não é uma pessoa fácil e seu único interesse é Stéphane (Patrick Pineau) que foi seu amante durante anos, mas que agora quer seguir com sua vida e cuidar do café que recebeu de presente de Frida, sem ter que se preocupar com ela ou com seus anseios de ainda serem amantes.

Frida é uma mulher que foi muito bonita e viveu como desejava e agora enfrenta a velhice. Stéphane é bem m mais novo do que ela e apesar da amizade que sente por ela não a vê mais como uma mulher e isto dói em Frida que tem que aceitar seu envelhecimento e perda de seu poder de sedução sobre ele. Anne sempre viveu para os outros, e ir para Paris é como um sonho, ela caminha pelas ruas e olha as vitrines, as roupas tão diferentes das que ela usa, a liberdade de poder cuidar finalmente de si mesma.

Duas mulheres, uma um pouco mais nova que sempre atendeu ao desejo do outro e agora se vê livre para fazer o que deseja e resolve então mudar e cuidar de si mesma. Frida enfrenta a perda da sedução diante de um desejo que persiste. Ela já não consegue seduzir os homens como antes. Se Ana nunca pode se enfeitar, ser bonita, Frida por seu lado foi o que sempre fez. No lugar da sedução ela vai tentar a chantagem para manter seu amante, se torna rabugenta, difícil. Ela que sempre viveu num mundo onde o sexo é livre de repente se vê diante da situação de não ser mais atraente aos olhos dos homens, pelos menos daqueles que ela deseja. E como nunca aprendeu a usar outra coisa para conquistar está em crise. 

Mas Frida descobre Anne, e se no começo a repudia depois se afeiçoa à ela, e juntas elas deixarão sua solidão amarga e difícil para tentarem viver, se sentirem belas e sedutoras, tão sedutoras como é Paris que atrai a todos com sua beleza e fascínio jovens e idosos.

Realmente quando nos apegamos à aparência, ao culto ao corpo e roupas é muito doloroso chegar ao momento onde isto já não é mais um trunfo de sedução. E vivemos numa sociedade que cultua a beleza física. Concordo que é difícil perceber que já não atraímos olhares, que os homens procuram outras mulheres mais jovens. Mas isto não impede de sermos belas e sedutoras sim, não como era antes, e nem iremos atrair o mesmo tipo de homem, mas o que realmente importa é se sentir bem, bonita, ter autoconfiança e amor próprio suficiente para não se desprezar por isto. E sempre pode surgir alguém que não olhará nossa cintura, e não ligará para as rugas, ou a pele que já não é tão lisa. E se não surgir, temos que nos amar assim mesmo. 

É muito difícil o início deste processo, principalmente para quem sempre se habituou a usar a sedução para conseguir o que deseja. A sedução do corpo, da beleza. Já para Anne que nunca pode usar roupas bonitas, nem seduzir o outro, ela se sente a mais bonita de todas. E isto chama a atenção para que reflitamos sobre nossas crenças.

- Conduzindo Miss Daisy 



Direção: Bruce Beresford - 1989 
Duração: 99 min
Título original: Driving Miss Daisy 

Adaptação da peça teatral de Alfred Uhry

Atlanta, 1948, Miss Daisy (Jessica Tandy)  ao tentar dar ré com seu carro, um packard novo, o joga no jardim do vizinho. Seu filho exasperado tenta convencê-la que é melhor ter  um motorista, mas ela não quer. Assim mesmo seu filho insiste e contrata um afro-americano, Hoke (Morgan Freeman).

Miss Daisy inicialmente se opõe e o trata friamente, mas aos poucos seus preconceitos e barreiras sociais irão caindo e ambos se tornarão amigos, uma amizade que durará por mais de vinte anos.

Um belo filme sobre as questões raciais, mas também sobre a amizade entre duas pessoas tão diferentes, mas solitárias, que conseguem se respeitar e compreender e fazer companhia um ao outro. Vale muito o tato que Hoke tem com Miss Daisy, mas ele também não abaixará a cabeça, conquistando sua confiança.

A primeira coisa que me chamou a atenção é que Miss Daisy tem que se impor ao filho, ela quer sua autonomia e independência, porém a idade pode nos impor certos limites que temos que aceitar. Mas nem tudo está perdido, há alternativas. Inicialmente ela não gosta do motorista contratado e por dois motivos, primeiro por ela ver nele o fim do seu tempo de dirigir o carro, mas ela é racista e preconceituosa, mas nunca é tarde para aprender que as pessoas não são sua cor, sua religião, seu status social. Ela vai ser rabugenta por um tempo impondo sua posição social que ela acredita ser superior a Hoke, mas ela vai encontrar nele seu melhor amigo, aquele que vai estar ao seu lado. E ambos irão se divertir juntos.

Já Hoke nos mostra uma dignidade e segurança. Ele não abaixa a cabeça como um serviçal. Ele está ali trabalhando, mas consegue compreender a solidão de Miss Daisy e a sua própria fazendo com que conquiste a confiança dela.


- O último amor de Mr. Morgan


Direção: Sandra Nettelbeck - 2013
Duração: 115 min
Título original: Mr. Morgan's last love. 

Baseado no romance "La doucer assassine" de Françoise Dorner.

Matthew Morgan (Michael Caine)  mora há alguns anos em Paris, nunca aprendeu a falar francês e acaba de perder sua esposa Joan (Jane Alexander). Três anos depois ele continua a viver em Paris, solitário, triste quando conhece Pauline (Clémence Poésy) num ônibus onde ela o ajuda. Tornam-se amigos. Pauline é uma professora de dança e ele começa a ir ao local e até tenta um passos de dança. Mas um dia ele não suporta a dor da perda de Joan e tenta o suicídio.

A solidão da velhice, aquele que fica quando outro morre e perde o sentido da vida. Morgan morava na França, mas nunca quis aprender a língua e dependia de sua mulher para se comunicar. Quando conhece Pauline que fala inglês sua vida parece ganhar um novo colorido, ele vai até mesmo tentar aprender a dançar, mas ainda assim a dor da perda é muito grande e ele tenta o suicídio. Neste momento seus filhos aparecem.

A filha vive no mundo atual, consumista, individualista, não se preocupa nem um pouco com o pai. O filho ao se deparar com Pauline não aceita, automaticamente ele pensa que é uma caçadora de dotes, que está interessada no dinheiro do seu pai. Acha impossível que uma mulher tão jovem ame seu pai. E aí é que vem o engano, há várias formas de amar. Pauline perdeu seu pai muito cedo e vê em Morgan a figura paterna, ela tenta reencontrá-lo. Já Morgan vê nela a sua mulher, nos traços, nos gestos e parece reviver este amor que o mantém vivo.

Ambos são solitários e tentam resgatar algo para se manterem vivos e construir um sentido. Já a relação de Morgan com os filhos é carregada de mágoas e culpas, de coisas que não foram ditas e expressadas.

A relação de pais com seus filhos sempre tem restos, coisas não faladas e não compreendidas. Os filhos julgam os pais e tendem sempre para um deles. Os pais não querem dizer aos filhos ou não conseguem dizer o que realmente sentem e pensam. E isto cria conflitos que somente através da palavra poderá se esclarecer e oferecer a oportunidade de mudanças.

O belo do filme é a relação entre Matthew e Pauline, um amor platônico, mas onde há o desejo dele, muito sutil, e ela que vê nele o pai, que também não deixa de ser o primeiro objeto de desejo da filha.

Penso muito no meu pai, conversávamos muito, mas ele morreu quando eu era jovem, 15 anos. E quanto ele deixou de me falar? Quantas perguntas eu teria para ele hoje. Fiquei sem saber. Minha mãe era muito fechada, sempre desviava para responder, dizia que não sabia. Então me resta construir uma história. Imaginar, sonhar e interpretar para que este vazio não fique. Morgan consegue dizer ao filho o que sentia e isto muda a relação dos dois. A filha não se interessa, volta para sua família.

Pauline tenta construir com Morgan a relação que não teve com seu pai. Buscamos o pai, e o mais comum é encontrar um homem a quem amar que tenha os traços do pai. O filho vai buscar a mãe, e não é por acaso que o filho de Morgan se apaixona por Pauline, uma vez que seu pai via nela os traços da mulher, o filho vai ver os da mãe.

- A Avó 



Direção: Frantisek Cáp - 1940 
Duração: 90 min 
Título Original: Babicka The grandmother 
Filme em preto e branco

Baseado no livro A Avó: uma história da vida rural na Boêmia, 1852 de Bozena Nemcová.

É a história de uma avó (Theresa Brzková)  que vai morar com uma filha e os netos que vivem no campo. Uma história singela, mas que traz muito dos costumes e tradições locais além das histórias desta avó maravilhosa que ensina muito sobre o viver.

Entre as tradições e lendas vemos no filme a avó acordar a neta com tapinhas na testa, para que a alma acordasse primeiro. O pão era sagrado, e pisar em uma única migalha faria as almas do purgatório chorarem. As visitas eram recebidas com o pão e sal.

A avó que todos desejamos é o que vemos no filme, a sabedoria, o amor, a ternura, e as histórias que elas contam.

Não conheci minhas avós, elas morreram antes de eu nascer. Aqui temos uma avó como todos sonham ter. Mas vemos também uma mulher que sabe ocupar seu lugar, o de avó, sem se ressentir disto. Infelizmente vemos muitas pessoas se sentindo velhas ao serem chamadas de avó e inclusive não querendo este lugar. Ou temos as avós modernas que já não são assim, a avó de nosso desejo. 

Meu neto nasceu quando eu tinha 41 anos, e não fui esta avó, sou a avó moderna. Mas nunca me senti mal em ser chamada de avó, muito pelo contrário. Inconscientemente desejamos a avó assexuada, que fica em casa fazendo bolos e tricotando, que nos conta histórias, que nos ensina. Mas mesmo não sendo esta avó caseira nada impede que possamos dar continuidade a isto, fazer bolos e contar histórias. A avó de certa maneira é quem dá continuidade as histórias dos antepassados, ela mesma já representa um antepassado. E ao invés de se ressentir ao pensar que avó é igual a velha, devemos ao contrário, usufruir deste lugar e da sabedoria que temos da vida para transmitir isto aos filhos, netos e bisnetos. 

Por outro lado no mundo atual vemos muitos netos que não querem saber de nada disto, estão mais voltados para seus vídeos games e internet. Mas vale a pena tentar pois acredito que apesar desta modernidade a criança é curiosa sobre suas origens, e todos nós gostamos de histórias, mesmo dizendo que são chatas porque não tem zumbis ou vampiros. As tradições, as histórias estruturam a pessoa, e mesmo que no momento o neto não dê atenção, isto lhe será de valia um dia na vida quando irá se recordar de sua avó e do que ela disse, ou de seu avô. 

- A Grande beleza


Direção: Paolo Sorrentino - 2013
Duração: 142 min
Título Original: La grande bellezza

Roma. Jep Gambardella (Toni Servillo) escreveu um único livro "O aparelho humano" e leva uma vida de luxo, em festas, indo sempre dormir quando os outros acordam, mas pouco a pouco ele começa a refletir sobre tudo isto.

Ele está com 65 anos e nunca mais conseguiu escrever outro livro, diz que procurava a grande beleza, mas não a encontrou. Começa a perceber a inutilidade de sua vida, e de todos que estão ao seu redor, pessoas que não fazem nada a não ser se divertir e falar dos outros.

Este filme é um confronto com a vida que levamos procurando sempre preencher buracos e acreditando ilusoriamente que temos muitos amigos quando na realidade temos apenas pessoas que nos encontram para se divertir e preencher por sua vez o vazio de suas vidas.

Quando ele conhece uma irmã com 104 anos que só come raízes, e que com sua presença calma deixa que vários pássaros que estão indo para o oeste permaneçam por um momento de descanso na varanda de Jep, ele começa a ter uma nova percepção do que é belo. A freira lhe diz que só come raízes porque as raízes são o que há de mais importante.

Um retrato trágico da sociedade de Roma com todas suas futilidades e fugas, e como dirá Jep, por baixo deste blá blá blá todo não há nada, está tudo desestruturado. Jep terá que abrir mão de todo este glamour e fama que ilusoriamente lhe pareceu preencher a vida e dar um sentido. Tudo ia bem quando era jovem, mas e agora? A vida ainda não acabou, mas o que fazer dela?

Ele terá então que compreender a nostalgia que sente do que ele não teve, Elisa não se casou com ele e agora está morta, mas mesmo assim, é na busca destas raízes que ele poderá recomeçar, poderá subir os degraus de uma vida até chegar a morte, como a irmã, mas dando um sentido, construindo um sentido para cada degrau, e eles não são fáceis de subir, é preciso esforço, é preciso desistir da ilusão da grande beleza, da perfeição,  para encontrar a beleza das pequenas coisas do dia a dia.

Na tentativa de preencher uma vida com coisas que pensamos serem grandes e melhores acabamos perdendo o contato com as pequenas coisas e que no fundo são as mais importantes. Enquanto somos jovens tudo isto funciona, mas chega o dia em que as coisas mudam e ainda estamos vivos.

Eu sempre tive uma vida corrida, agitada, estressada, até que acabei com uma ataque de ansiedade diagnosticado na época como ansiedade generalizada. A partir deste momento comecei a reduzir o ritmo até encerrar de vez toda esta loucura. Hoje vivo em paz, atenta a pequenas coisas como uma planta que está crescendo, o por do sol, uma comida gostosa, pintar cerâmicas para colocar na minha casa, brincar com meus cachorros, dar atenção a poucos amigos, viajar, ler, vejo o mundo com outros olhos e sou bem mais feliz. 

No sistema consumista que vivemos não é fácil para muitos abrir mão de toda a parafernália que nos rodeia, de aceitar ganhar menos para ter uma vida mais tranquila, mas chega o dia que você se aposenta, que o corpo já não tem a vitalidade de antes, que os amigos começam a morrer e chegou a hora de olhar para sua vida com outros olhos. E então talvez seja possível ver onde está a Grande beleza da vida. 


- Filhos da Natureza


Direção: Friörik Pór Friöriksson - 1991
Duração: 82 min
Título original: Börn Náttúrunnar

Um filme para refletir sobre a velhice, a solidão e a morte.

Thorgeir (Gísli Alldórsson) é um homem idoso, vive sozinho num local isolado da Islândia e logo no início sentimos sua solidão por seus atos. Ele então decide partir e vai ao encontro de sua filha que vive na capital em Reijavic, porém a recepção não é o que podemos chamar de agradável. O marido apesar de o receber bem no primeiro dia depois mal fala com ele, mas o pior é a neta que grita com ele e o despreza.Ele está tão só ali como estava em sua casa.  Sua filha sugere então que ele vá viver em uma casa de idosos.

Lá ele encontra Stella (Sigridur Hagalín), uma velha conhecida da infância que ele vê assim que chega sendo arrastada pelas enfermeiras pois havia tentado fugir. Stella quer voltar ao local da infância e deseja ser enterrada lá.

A vida na casa de idosos não é ruim, mas o que sempre me chama a atenção é como tratam os idosos, como se eles não pudessem mais fazer escolhas, tomar decisões, vivem como se fossem loucos ou doentes, sem liberdade. A velhice não é sinal de demência, então porque não podem sair? ir a um cinema? fazer compras, visitar pessoas? fazer escolhas? São tratados como crianças ou até pior que isto, uma vez que a criança tem o futuro a sua frente, mas o idoso vive seus últimos momentos de uma vida onde ele já teve escolha e cuidou daqueles que hoje são adultos e os tratam assim. Há uma cena onde servem chá e a moça pergunta à filha se era leite ou açúcar para ele, como se ele fosse incapaz de escolher e ter gostos e desejos, incapaz de falar e responder.

- E se vivêssemos todos juntos?



Direção: Stéphane Robelin - 2011
Duração: 96 min
Título original: Et si ont vivait tous ensemble?

Dois casais e um solteiro, todos já entrando na velhice e amigos há mais de 40 anos. Annie (Geraldine Chaplin) é casada com Jean (Guy Bedos), Jeanne (Jane Fonda) com Albert (Pierre Richard) e ambas as mulheres tiveram um caso amoroso com Claude (Claude Rich).

Cada um deles enfrenta questões com a saúde, a sexualidade, a questão de morar sozinho. Jean é quem tem a ideia de todos morarem juntos em sua casa que é grande. Inicialmente os outros são contra, querem preservar sua privacidade e individualidade, mas a medida que cada um deles enfrenta um problema de saúde isto vai mudar. Albert tem um cachorro, Oscar, só que ele é bem grande, e um dia ao levá-lo passear o cachorro que é mais forte que ele o derruba. Sua filha quer se desfazer do cachorro. Claude sofre um problema no coração, e seu filho quer vender seu apartamento e colocá-lo em uma casa de idosos. Jeanne sofre de uma doença incurável, e sabe que Albert que já começa a perder a memória não poderá ficar sozinho. Então entre uma casa de repouso e morarem juntos obviamente optaram pela segunda opção.

Não é fácil, mesmo diante de questões difíceis, eles ainda prezam sua autonomia, independência, mas precisam de entorno e apoio. Mas entre ir para uma casa de repouso onde infelizmente ainda se trata o idoso como um ser que não tem mais desejo nem autonomia, eles optam por uma alternativa diferente.

Um retrato bem humorado da velhice com todas suas questões que nem sempre são alegres mas que fazem parte da vida. Os filhos que sempre procuram resolver o problema de uma forma que eles se sintam menos culpados e ao mesmo tempo que não lhes tire seu tempo para cuidar de alguém. É interessante como há uma visão errônea que parece acreditar que um velho não pode mais tomar suas próprias decisões, precisa ser cuidado como um bebê. Como diz Claude, eu prefiro apodrecer em meu apto. do que numa casa de idosos. É um direito dele.

Mas por outro lado o filme trata a velhice de uma forma madura, onde cada um deles não se deixa levar pela idade e suas limitações, e mais do que isto, a amizade entre eles é tocante, eles se compreendem e se apoiam mutuamente.

- Quarteto



Direção: Dustin Hoffman - 2012 
Duração: 98 min 
Título Original: Quartet 

Em uma grande casa no meio de um parque belíssimo vivem vários idosos que são músicos e cantores aposentados. Eles passam o tempo lembrando os bons tempos, mas também continuam tocando e cantando. Todos os anos eles realizam uma festa com apresentações para arrecadar fundos para manter a casa. Cissy (Pauline Collins), Reggie (Tom Courtenay) e Wilfred (Billy Connolly) vivem lá e estão ensaiando para a apresentação. 

É quando chega uma nova moradora que ninguém sabe quem é. Trata-se de Jean (Maggie Smith), ex-esposa de Reggie que de início não fica nada satisfeito em vê-la ali. Mas logo os três pensam em reviver o quarteto que interpretou Rigoletto, porém Jean se recusa. 

O filme toca em temas da velhice, a perda da memória, as doenças, o corpo que já não é o mesmo. Novamente vemos pessoas mais jovens tratando idosos como se fossem débeis, o que não são, mas ali, os moradores tem respostas na ponta da língua. Chega a ser deprimente ver Wil ter que pedir a médica que cuida do local para poder ir jantar fora com os outros três afim de convencer Jean a cantar, ela impõe até horário que só é estendido após uma pequena chantagem feita por Wil. Este tipo de comportamento tão comum em nossa sociedade é algo que precisa mudar, idosos não são dementes, eles tem limitações naturais de sua idade, mas muitos ali são lúcidos e portanto capazes de escolhas.

- O violinista que veio do mar


Direção: Charles Dance - 2004 
Duração: 113 min 
Título original: Ladies in Lavender 

Um filme belo sobre o desejo e o amor. 1936 - em uma pequena vila de Cornwell norte da Inglaterra duas irmãs que vivem juntas Ursula (Judi Dench) e Janet (Maggie Smith) ao passearem pela praia após uma tempestade encontram um jovem desfalecido. Elas o levam para casa e cuidam dele.

Esta relação de cuidado irá despertar coisas adormecidas, o amor e o desejo, e ambas começam a rivalizar para conquistar o amor do jovem Andrea (Daniel Brühl) . Há cenas hilárias como a da torta de sardinhas e os comentários sarcásticos da outra irmã apenas para desfavorecer a outra perante o jovem.

Este filme nos mostra claramente que não importa a idade que tenhamos o desejo está vivo e somos capazes das mesmas coisas que fazemos quando adolescentes por amor. 


Há muitos outros filmes que tratam da velhice, por enquanto posto estes. Mesmo que ainda não estejamos nesta fase da vida há algo muito importante a aprender com estes filmes, seja para nós mesmos ou para termos uma relação mais saudável com os idosos que nos são caros, nossos avós, pais, conhecidos ou um idoso na rua que encontramos.

A nossa sociedade precisa aprender a respeitar o idoso e ter consciência de que o idoso não é alguém que depende dos outros para tomar decisões, ter escolhas e que ele sabe sim o que quer. Precisamos saber que o idoso tem desejo e que sua vida sexual não acabou e que isto não é nenhum escândalo, muito pelo contrário, é belo. 

Esta inversão do filho que deseja ser o pai ou mãe de seus pais não é saudável nem legítimo. Os pais estão acima deles na estrutura familiar e não são uns débeis mentais incapazes. No Oriente os idosos e antepassados são cultuados e respeitados. No Ocidente há o horror à velhice, as pessoas esquecem que também ficarão velhas, a menos que morram antes. A atriz Tônia Carrero uma vez declarou: amo ser velha! ... porque a outra opção é a morte!



segunda-feira, 3 de novembro de 2014

MEMÓRIA DE MINHAS PUTAS TRISTES - O medo de amar


Márquez, Gabriel García.17ª ed. Record, 2007
Tradução: Eric Nepomuceno
127 páginas
Título original: Memoria de mis putas tristes.

Ao completar 90 anos um cronista e crítico musical decide comemorar seu aniversário ao lado de uma jovem virgem, e para isto liga para sua conhecida Rosa Cabarcas, dona de um bordel que não via há muitos anos.

O que poderia ele desejar com isto? Provavelmente inicialmente ele queria reviver sua vida e se despedir dela. Mas o que nosso protagonista não esperava era se apaixonar aos 90 anos pela  bela virgem que ele resolveu chamar de Delgadina. E detalhe, foi a primeira vez em sua vida que ele se apaixona.

Apaixonar-se aos 90 anos ou aos 20 anos, dá tudo na mesma. Ele vai sofrer todas as loucuras da paixão. Justamente o que ele temeu a vida toda. Irá lhe dar presentes, entre estes uma bicicleta que ele não resistirá a experimentar andando com ela e cantando, comprará flores, irá decorar o ninho de amor para que fique mais aconchegante, irá minar sua amada, mas não irá deflorá-la. Se contentará em olhá-la, tocar seu corpo, beijar seu corpo e dormir ao seu lado indo embora sempre antes das cinco horas da manhã.

E viverá pela primeira vez tudo que o amor pode proporcionar, seu pensamento estará constantemente no ser amado, a imaginará ao seu lado, sentirá sua presença, seu cheiro, a tal ponto que teme olhar a realidade e perder a imagem que ama. Terá que se haver com o ciúme, o desespero, a ansiedade da espera, o temor de perdê-la.

A bela lição deste livro é que não importa a idade que tenhamos podemos nos apaixonar e viver tudo o que isto acarreta do mesmo modo do que quando jovens. Enquanto estamos vivos o desejo está ali, o amor e a paixão existem, ao contrário do que muitos pensam achando que a velhice é antônimo disto tudo. 

O medo de amar é algo que nos mutila, deixamos de viver coisas importantes. É o medo da rejeição, da perda. Não suportar que podemos perder o ser amado, não apenas para a morte, mas ele pode deixar de nos amar, deixar de ser algo bom para nós e nós para ele. O medo de amar envolve também amizades, quando temos medo da intimidade com os amigos e nos limitamos a camaradagem, nunca nos abrindo ou fazendo confidências, nunca falando de coisas mais sérias, levando o que chamamos de amizade de maneira divertida e boa. Eis porque muitas vezes quando estamos tristes nossos supostos amigos não suportam isto, acham chato, não é isto que está no "acordo". O medo de perder o amor dos pais nos levando a atender aos desejos deles. Mas o pior medo, o de amar a si próprio que requer responsabilidade e sustentar o que se pensa e fala, independentemente de estar ou não agradando ao outro. 

Somos muito suscetíveis ao outro, o que ele pensa de nós, será que nos ama? e nos deixamos afetar muito por isto. E conseguir se libertar disto é uma liberdade imensa. 

O amor de nosso protagonista do livro não envolve sexo, por mais que estejamos num bordel, mas envolve a pulsão sexual da vida e tudo que isto acarreta e que é o viver sem medo de amar. Amar o outro sem esperar nada dele, uma vez que esta jovem não irá lhe retribuir o amor que ele sente. 

Ler ou ver filmes sobre a velhice nos ensina e muito para um momento em que teremos que nos ver com isto também, e por outro lado nos leva a respeitar nossos idosos e a nos lembrar que apesar da idade eles estão vivos, desejam, são seres humanos. O que envelheceu foi o corpo. 

LIVRO: A ORIGEM DO MUNDO - o que move o nosso desejo?



O que move nosso desejo?

Edwards, Jorge. Cosac Naify, 2014
158 páginas
Tradução: José Rubens Siqueira
Título original: El origen del mundo

Este livro é impactante, brilhante. Ele vai nos falar do ciúme, mas vai muito além disto. A velhice, o desejo, a fantasia que nos permite viver.

Gustave Courbet pintou em 1866 o quadro "A origem do mundo", uma mulher com o rosto velado, de pernas abertas com sua vulva aparecendo. O quadro foi encomendado por um bei da Turquia. Pertenceu a Jacques Lacan, o psicanalista francês, e depois foi exposto no Musée D'Orsay em Paris.

Patrício Illanes é um médico setentão casado com Silvia, chilenos que se exilaram em Paris, assim como seu amigo Felipe Díaz. E tudo começa quando Patrício e Silvia vão a exposição do quadro "A origem do mundo", onde Patito pensa que ele se parece com sua mulher. Na sequência dos acontecimentos temos o suicídio de Felipe Díaz, outro exilado, mas não sem antes haver um encontro entre este e Patito num café onde Felipe lhe fala de uma mulher filósofa, mexicana-japonesa, e de que acabou trocando um garrafa por uma mulher. Felipe bebia muito. Quando Silvia vê Felipe morto tem uma reação histérica que surpreende Patito e parece lhe confirmar suas suspeitas de que ambos eram amantes. A partir daí temos o relato neurótico de Patito em busca das provas desta traição.

O delírio de Patito em busca das provas da traição é algo que nos incomoda, mas porque? quando sentimos ciúmes ficamos cegos, e de certa maneira gozamos deste sofrimento. Somos nós mesmos que criamos o ciúme e ele nos encarcera. Claro, às vezes realmente pegamos o ser amado com outra pessoa e de fato ele ou ela está nos deixando, mas na maioria das vezes o ciúme é fruto da insegurança, da dúvida, mas é mais que isto, é uma forma de gozar com dor, de como diz o ditado popular: procurar chifres em cabeça de cavalo. Não devemos desprezar o que sentimos quando surge uma dúvida ou suspeita, mas devemos aprender a não nos deixar prender por este ciúme que leva à loucura, a dor. Diante de uma dúvida, nada melhor que que colocar as coisas a limpo com a pessoa envolvida. Obviamente o outro pode mentir, ocultar. Mas o que fica mais evidente diante do ciúme é a cegueira que nos oblitera o pensamento e os atos. Como no livro A mulher perdida, que já postei. Negar a realidade e procurar o que desejamos encontrar para gozar ou nos fazer de vítima, também para gozar este estado.

Se pararmos para perceber o que fazemos diante do ciúme veremos o quão patéticos somos, e por isto nos incomoda assistir ao delírio de Patrício. Também podemos nos unir a ele e ficar com raiva dos outros, mas isto também é doentio. A impressão que ele tem que todos o estão enganando, não querem lhe dizer a verdade, mas o que é a verdade neste caso? Todos declaram que nunca viram nada nem ouviram falar de nada e se irritam com a insistência dele. Claro, ele os está desacreditando e isto os incomoda. Então porque pergunta? se não acredita em mim?

Mesmo diante da realidade que não condiz com o que desejamos, que é ser traídos para gozar, vamos encontrar outros motivos. Supondo que ele siga a mulher pensando que vai se encontrar com alguém, e ela simplesmente vai ao cabeleireiro. Ele então vai supor que está se enfeitando para o outro. E assim feito um círculo vicioso para atender ao seu próprio desejo, e se manter preso dentro deste sofrimento. Muitas vezes ao descobrir de fato a traição o sujeito então cai na real e se afasta triste e calado. Acabou! ele que tanto desejava pegar no flagra agora tem que tomar uma decisão, e ele sabe que talvez não sirva de nada saber e dizer o que viu para manter o ser amado com ele, pelo contrário, é o momento da decisão. O jogo acabou.
Outros não suportam e passam ao ato. Matam. Para manter o ser amado junto a si para sempre, num túmulo e tirá-lo do outro.

Mas aqui nesta história o caso não é este. E isto torna o livro mais brilhante. Ele vai mais fundo. O ciúme é apenas um lado da questão. Patito tem setenta anos, sua esposa é mais jovem, ele enfrenta a questão do desejo. No livro da Gabriel García Marquez - Memória de minhas putas tristes, também vemos alguém na velhice se defrontando com o desejo e a sexualidade.

Quando olha para a pintura algo desperta dentro dele. Sua vida sexual já não é como foi. Ele precisa criar algo para que ela se mantenha, mas não tem consciência disto. O que se despertou foi a fantasia sexual. Ele vê Felipe Díaz chegar ao fim de sua vida sexual trocando a mulher por uma garrafa. Mas também passou a vida ouvindo sobre a vida sexual movimentada do amigo, e nisto inclui sua mulher.

A fantasia inconsciente, o desejo, a paixão, o sexo e o erotismo, a fantasmagoria, tudo isto está neste livro e descrito de uma maneira esplêndida. O quadro A origem do mundo também pode ser interpretado como de onde nascemos, de onde viemos, e a velhice é o fim, e não é um retorno ao paraíso, mas é o nada, o vazio, o não conhecido que assusta. Somente com a ficção ou a fantasia, ou a imaginação, se pode lidar com a morte, e a velhice é o momento onde isto vai surgir fortemente, este medo da morte e a consciência que estamos muito longe desta origem. Patito prefere a ilusão do que a morte, prefere o amor-paixão que reaviva o desejo, e o que mais é a vida do que o desejo? ele nos movimenta. Quando o desejo cessa, estamos mortos.

Felipe Díaz não suportou e preferiu morrer, Patito optou pela vida, mesmo  sofrendo, mas quem sofre está vivo. Ambos sofreram a frustração de seus ideais políticos, ambos tiveram que sair de seu país e se exilarem, e sabiam que mesmo depois de tudo ter passado, não seria mais possível voltar ao seu país, não se identificariam mais com este lugar que ficou no passado. Se esta origem não lhes permitia viver, então porque não a origem da vida? o sexo e todo seu lado erótico.

Na velhice o erótico já não é como antes, e para não cair num sexo carne, animal, a fantasia e a ficção vem para sanar isto. Não é mais o belo corpo, mas a fantasia.

O que mais me encantou neste livro foi isto, expor a fantasmagoria que nos move o desejo. A falta, o buraco, o vazio que precisamos preencher de alguma maneira e que nunca conseguimos, restando rodeá-lo de alguma maneira. Muitas vezes somos pudicos com nossas fantasias, e elas atuam sem que as reconheçamos. Patito teve que criar todo o cenário do ciúme para chegar ao que desejava, uma noite erótica com sua mulher como antes, para com isto se sentir vivo, mesmo na velhice onde a morte se aproxima. Ele luta pela vida.

Felipe optou pela bebida e a morte. Outros preferem comer e com isto engordam. Mas penso que Patito escolheu o melhor caminho, por mais estranho que possa parecer. Claro, que ele teve a sorte de que sua esposa percebeu e entrou junto nisto.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

LIVRO: A MULHER PERDIDA - TIM WINTON - Aprender a viver com as perdas


Winton, Tim. Paz e Terra, 2009
439 páginas
Tradução: Juliana Lemos
Título original: The Riders

Comprei este livro por ser uma história que nos leva a ver que nunca podemos conhecer o outro, e nem a nós mesmos, pois diante de situações que surgem e que fogem ao conhecido podemos ter ações e reações totalmente inesperadas. E também sobre a dificuldade que temos diante de perdas e das escolhas que os outros fazem.

Sobre o livro eu postei no meu outro blog: http://cantodaleitur.blogspot.com.br/

Aqui vou falar sobre o que senti e o que aprendi neste banquete que é este livro.

Quando Scully vê que sua filha chega sozinha e sua mulher não veio junto ele começa a encontrar todo tipo de desculpas para isto ter acontecido e todas a favor de sua esposa Jennifer. Billie, sua filha, não diz nada. Fico na dúvida se ela quer poupar o pai ou se está em choque também, afinal é sua mãe que os abandonou.

Scully não aceita ver a realidade, Jeniffer os abandonou. É interessante ver que alguns, principalmente os apaixonados, como é o caso de Scully, procuram motivos que absolvem o outro e também não conseguem ver suas próprias falhas, encontrando para elas também razões, e no caso da história ele sempre se vê fazendo tudo para agradar a sua esposa, para deixá-la feliz, e com isto acredita que eles eram felizes.

Por outro lado temos aqueles que diante de algo assim, mesmo que possa ter havido uma razão e não ser abandono, imediatamente iriam pensar, imaginar as piores coisas e se colocariam no lugar de vítima e taxariam o outro de injusto. Qual a diferença entre estes dois tipos de reações? Ambas são ilusórias e imaginativas, sendo que esta última antecipa um gozo de dor. O fato é que se ela não veio há uma razão, mas diante disto, sem nenhum comunicado ele poderia ter uma reação diante da realidade, ou seja, comunicar à polícia por exemplo que não tem notícias de sua mulher que deveria chegar junto com a filha.

E se ele não faz isto é porque no fundo ele sabe a verdade que não quer saber e para chegar a ela irá mergulhar num inferno. Ele resolve então ir procurar sua mulher. Vai para a Grécia, Itália, Paris, Amsterdã, levando sua filha junto.

Há certos indícios que aparecem e que ele nega ver, como por exemplo, porque ela não depositou o dinheiro da venda da casa na conta conjunta, mas abriu outra e lhe mandou um cheque com um valor apenas para necessidades?

Quando estamos apaixonados enxergamos tudo, menos a realidade. Enxergamos o que desejamos ver, o que desejamos que seja. E nos enganamos sobre o outro pensando que o conhecemos. Queremos confiar neste ser amado e pensamos que nunca será capaz de nos trair. Esta confiança é algo que vem da infância, onde tínhamos a mesma confiança cega em nossos pais e dependíamos deles para sobreviver e também do amor deles.

Scully está tão obcecado que qualquer reação das pessoas lhe parece que estão escondendo algo, como acontecia com o médico no livro a Origem do Mundo sobre o qual irei falar também aqui no blog. Ele pensa que todos sabem e não querem lhe dizer. Começa a ter ações patéticas e incompreensíveis como colocar em risco sua filha numa travessia marítima com o mar bravio e tratar seus ferimentos após ela ser mordida por um cachorro ele mesmo.

O silêncio de Billie também é angustiante. Ele a descreveu como uma criança alegre, inteligente e muito falante. E ela não fala quase nada. Cheguei a me perguntar se é ele quem não escuta ou ela não fala mesmo, porque ela sabe a verdade, e talvez ele não queira ouvi-la. Prefere continuar com sua busca insana. Ele não tem nenhuma atitude no real, continua divagando na ilusão e no imaginário.

Scully irá ao inferno até aceitar a realidade e voltar para sua casa com sua filha. Esta viagem que ele faz no livro para vários lugares também poderia acontecer dentro dele mesmo sem sair de onde estava. Ele precisa confrontar seus fantasmas, medos, inseguranças e aprender a ser sujeito se libertando do desejo do outro.

Billie é uma criança de sete anos que de repente amadurecerá antes da hora, mas será ela quem irá resgatar seu pai. Ela o compara a Quasímodo, o corcunda de Notre Dame, pois Scully não é bonito, é grandão, tem uma cicatriz no rosto, mas tem um bom coração.

Quando nos damos conta de que somos capazes de fazer coisas que jamais teríamos pensado fazer é que percebemos que não conhecemos nem a nós mesmos quanto mais ao outro. O que levou Jennifer a abandonar a família não é contado no livro, ele foca em Scully e Billie e dá algumas informações sobre Jennifer a partir dos outros, o que nos leva a pensar ao final do livro que são apenas suposições e que talvez estejam bem longe do real de Jennifer.

Aceitar que o outro não pensa ou se sente igual, como no caso de Scully que achava que ao fazer tudo que ela desejava ela era feliz. Ele que se satisfazia com pouco acreditou que o mesmo ocorria com ela, mas talvez não fosse assim.

Quantas vezes nos iludimos dando respostas e desculpas para o que alguém nos fez, procurando compreender o porque ao invés de olhar para si mesmo e se perguntar como isto me afeta e o que posso fazer para sair deste sofrimento. Não podemos mudar o outro nem podemos saber o que o outro pensa ou deseja, mesmo quando ele nos fala, nem sempre é a verdade, as vezes nem o outro mesmo sabe a verdade.

Se no primeiro momento Scully dá mil desculpas para o abandono no segundo ele quer saber porque ela fez isto. E ficará sem saber, como tantas vezes acontece na vida.

O livro me lembrou uma psicanálise, quando se passa durante um tempo através de todos os traumas, fantasmas, desejos, e se vai ao fundo o que muitas vezes produz sofrimento mas se sai do outro lado se sentindo outra pessoa, mais consciente, e sabendo que nem tudo é perfeito, que nós somos imperfeitos e que carregamos em nós mesmos o bom e o mau, que somos capazes de ser cruéis, de fazer coisas a si mesmo e ao outro que pensávamos ser incapazes. A análise é uma viagem, assim como Scully que enfrentou tudo em uma viagem por vários lugares procurando por Jennifer para acabar encontrando a si mesmo.

Recomendo o livro.




sexta-feira, 24 de outubro de 2014

FILME: A VIDA SECRETA DAS PALAVRAS - palavras que curam



Direção: Isabel Coixet - 2005
Duração: 115 min 
Título original: La vida secreta de las palabras

Culpa - poder da palavra - trauma 


Um filme denso que fala sobre a culpa causada por erros, paixões, prazeres. 

Este é um filme indicado para quem sente muita culpa e não consegue nem falar sobre isto. 

Josef (Tim Robbins) conhece Hannah (Sarah Polley) após sofrer um grave acidente em uma plataforma petrolífera. Hannah irá para cuidar dele como enfermeira. Josef é brincalhão, mas atrás de suas brincadeiras há um dor profunda e muita culpa, já Hannah é quieta, e se impõe uma vida austera, seja no que come, onde dorme, ela não se permite nenhum prazer. 

Aos poucos irão falar. Ela inicialmente contará sua história como se fosse de outra pessoa, ainda não consegue nem mesmo falar como se fosse sua história. A fala, o compartilhar entre eles de suas dores iniciará um processo de cura das culpas, da dor, dos traumas. 

Vemos os efeitos da culpa e do trauma em suas vidas, as obsessões, os boicotes, medos. Aos poucos um pequeno prazer é permitido. A fuga para não se confrontar com suas dores. 

É receber do outro o que este não tem, é dar ao outro o que nos falta. 

O filme é triste, comovente, mas que traz a mensagem da possibilidade da vida mesmo diante as piores dores. 

A culpa é algo que devemos trabalhar. Temos responsabilidade sobre nossas escolhas ou ações, mas nos culparmos por coisas que muitas vezes nem depende de nós é acreditar que temos poder demais. 

Durante anos carreguei culpas até me dar conta que mesmo não dando certo, mesmo errando o que era realmente importante é que no momento em que fiz a escolha era o que foi possível fazer, e tentei fazer o melhor, mas nem sempre acertamos, porque não somos perfeitos. 

É muito difícil tirar estas culpas, ainda mais quando tem consequências trágicas como no caso do filme, mas se não for feito a vida se deteriora como vemos os personagens do filme fazerem. E a melhor maneira de fazer isto é falando, falando, falando. 

Quando somos vítimas de um assalto ou acidente precisamos contar isto várias vezes, e a cada vez que o fazemos parece que diminui a carga emocional e o trauma, mas se nos calamos e guardamos isto para si, esta carga emocional terá consequências. 

Quando a Segunda Guerra terminou houve como um pacto de silêncio, uma negação e todos queriam esquecer e olhar para a frente. Mas o trauma estava ali no inconsciente de cada um e foi se perpetuando, sendo transmitido aos filhos, netos, pela herança psíquica. Hoje passados anos do fim da guerra notamos nas livrarias muitos relatos e não deixo de pensar em duas coisas: primeiro, as pessoas que viveram a guerra hoje estão bem idosas, e eram crianças na época, mas precisam contar, falar. E a segunda coisa é que precisou de todos estes anos de distanciamento para que o outro pudesse ouvir, porque na época as pessoas não queriam ouvir o outro e muitos não conseguiam acreditar naquilo tudo. Acho de extrema importância que hoje se fale disto cada vez mais pois está limpando, diluindo, deixando este traço cada vez mais fraco, para que desta forma deixe de se transmitir com força. 

Lacan diz que a doença é a palavra não falada. Quando conseguimos expressar de alguma forma a dor que carregamos e quanto mais o fizermos melhor será pois se divide isto e se dilui.

Vale assistir a este filme e ver o poder da palavra em relação aos traumas e à culpa. 



Assista ao filme: : http://www.filmesonlinegratis.net/assistir-a-vida-secreta-das-palavras-dublado-online.html


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

LIVRO: O SAL DA VIDA - aprendendo a sentir o existir.




Héritier, François. Valentina, 2012
Tradução: Maria Alice A. de Sampaio Dória
108 páginas
Título Original: Le sel de la vie

Sentido da vida e o viver - Pequenos prazeres 

O que faz a vida valer a pena! o que faz com que nos sintamos vivos! 

Este pequeno livro tem uma imensa sabedoria. O que é viver afinal? o que faz a vida valer a pena? como é que percebemos que estamos vivos? o que é existir afinal? 

Sempre pensamos que as respostas a estas perguntas se relacionam com as nossas realizações, sejam elas pessoais, sejam profissionais ou sejam as intelectuais, mas eis que uma intelectual nos brinda com um livro que nos diz que não é nada disto. Trata-se sim do simples sabor de viver, aquelas pequenas coisas, aquele momento, aquele instante que nos emociona a não poder mais, que nos faz rir, que nos deixa com raiva, que provoca ódio, que nos enoja, que causa medo, que causa fascínio, que nos dá pavor. 

É impossível colocar sal na boca e não ter uma reação que pode ser agradável para alguns ou desagradável para outros, mas este sentir, esta percepção é que nos mostra que existimos, que estamos vivos. E este existir está ao alcance de todos sem exceção. 

Muito se fala na busca de um sentido para a vida. Eu pessoalmente acredito que sentido tem que ser construído por cada um de nós. Agora o que nos faz sentir que estamos vivos? A vida por si mesma, viver, conjugar este verbo, não o substantivo. Como conjugar este verbo? 

Nosso corpo registra e através dos sentidos captamos o viver. É através da sensualidade do corpo, destes registros, destas marcas que ficam e que nos movem que podemos seguir em frente, e que sabemos o caminho, que nos tornamos capazes de sentir. 

Lendo este livro compreendi por que eu sinto às vezes uma nostalgia dolorosa, esta saudade melancólica, de um prazer imenso em algo tão frugal e banal, apenas uma lembrança rápida, sem muito contexto. Compreendi porque às vezes tenho sensações que chegam a ser uma angústia prazerosa. Por que fico fixa e presa a algo que me causa pavor, mas fascínio ao mesmo tempo. 

O cheiro da manhã, não há como definir, falar disto, como chamá-lo? que odor é este que entra pelas narinas e causa um prazer e dá vontade de fazer mil coisas? O barulho da água que acalma, que é bom para dormir. Olhar as nuvens no céu e pensar na imensidão que está acima de nós, mas também brincar em ver coisas nestas nuvens. 

O pavor e fascínio diante uma onda gigantesca no mar. Quando vou a Foz do Iguaçu e paro na frente das Cataratas meu olhar se prende naquela imensidão de água, me hipnotiza. E depois quando subo os degraus e vejo o rio manso antes de cair no abismo e formar as cataratas.

Mas também ver o beija-flor na minha janela bicando o papai noel que estava ali, ver uma planta nascer. Sentir o prazer de tomar um sorvete, comer uma torta de chocolate, o gosto do chocolate com café, a manteiga gelada no pão fresco. Colocar a mão na terra, sujar a mão, tomar um banho quente gostoso. Sentir os lençóis macios em contato com a pele, o peso do cobertor quando está frio.

Sentir raiva quando batemos o martelo no dedo, xingar muito. Ficar com ódio quando queimamos o arroz, ficar triste ao encontrar um passarinho morto no jardim, chorar quando assistimos um filme, gargalhar com uma cena bem idiota.

Héritier se lança nesta aventura da escrita ao receber uma carta de um professor que ela admira muito e que pede desculpas por estar de férias, mas que na verdade estava se desculpando por roubar sua própria vida, não aceitando que se pode e se deve viver sem ser engolido pelo dia a dia, pelos compromissos assumidos, pelas aparências, pelas obrigações, pelo dever, pelo trabalho, pela obsessão de ser perfeito e atender a tudo e a todos. Temos nossa vida a qual respondemos da melhor forma que podemos, seja em nossos relacionamentos, trabalho, amizades, engajamentos, mas temos que viver também, e não se deixar sufocar por tudo isto que também é importante, mas não menos ou mais que este tempero que encontramos nas pequenas coisas do dia a dia em toda nossa vida.

O que este livro nos mostra é como sentir o existir. Como apreciar a vida ao lado da construção de um sentido para ela. Nunca nos damos conta de que estamos vivos, que somos vivos, estamos sempre querendo viver a vida, mas a vida em si é algo vivo, é algo que atua, é um verbo.

Quando dizemos estou cansada da minha vida. Estamos sempre nos referindo as nossas frustrações, desencantos, ao que não deu certo segundo o que desejamos, mas não podemos nos cansar da vida que está em nós, esta está sempre pulsando, mesmo quando ao dizer que estamos cansados, vamos nos sentar num sofá, deitar na cama, chorar, e tudo isto é vida. Estamos sentindo algo, e isto é vida. 

Um livro de cabeceira! E há um espaço ao final do livro para colocarmos o nosso tempero.




segunda-feira, 4 de agosto de 2014

LIVRO: OS ENAMORAMENTOS - Escutando o outro



Marías, Javier. Companhia das Letras, 2012
Tradução: Eduardo Brandão
344 páginas.

Relação com o outro - o amor - as ilusões 

O que mais me chamou a atenção neste livro de Javier Marías é que ele é narrado pela ótica de María, mesmo quando se trata de falar de outro personagem é sempre o que ela vê e pensa. 

É o que normalmente fazemos e como nos enganamos. Escutamos ao outro nos escutando, através da nossa subjetividade e não o que realmente o outro está falando. Rubem Alves já dizia que seria bom termos cursos de escutatória ao invés de oratória. Enquanto o outro fala já estamos pensando no que dizer, responder, no que faríamos se fosse conosco, ou então estamos elaborando uma crítica ao outro, sem nunca parar para pensar no que o outro está falando dentro do contexto dele. Como é difícil fazer isto. 

Milan Kundera também escreveu um livro sobre isto: "Risíveis Amores". Que falta de encontro, que falta de compreensão, e quantos enganos. 

E quando nos enamoramos é pior ainda. Ouvimos o que queremos ouvir. Mas há também o outro lado, será que ele ou ela fala a verdade? nunca conseguimos saber realmente. Imaginamos, conjeturamos, deduzimos, as palavras tem significados diferentes para cada um e tudo isto leva ao desencontro. 

Desejamos ouvir algo e preenchemos as lacunas com nossa imaginação, fantasia. 

Marías vai mais longe, ela ama alguém que ama outra, então ela fantasia eliminar esta outra, deseja que ela morra. Quem já não sentiu isto? Por que ela e não eu? então se ela morrer eu estou aqui, e ele vai olhar para mim. Doce ilusão amarga. Quando desejamos ser amados queremos eliminar o rival ou a rival, isto desde a infância, onde inconscientemente desejamos eliminar o genitor que interfere ou o irmão ou a irmã, e isto nos acompanha pela vida, na fantasia, na imaginação e alguns no ato. 

Quando estamos apaixonados interpretamos sinais e palavras conforme o que desejamos e não de acordo com o que é. Mas quanta confusão, e se forem realmente sinais amorosos e eu não der atenção? Quanta dúvida. Será que o que ele disse é uma indireta? é algo para eu compreender? e que agora não sei se é ou não é?

Quantas vezes fiquei sem saber o que era real. Imaginei algo e era outra coisa. Dias atrás uma pessoa me disse : é bom compartilhar a comida e eu ouvi é bom compartilhar comigo. Era o que eu desejava, não era o que estava sendo dito. Outra vez me responderam sobre algo que imaginei ver: é a realidade, mas não é real! até hoje não decifrei esta resposta. 

E as suposições então, que terríveis são. Vemos algo e imediatamente já temos a história formada em nossa mente ou coração, e sofremos muitas vezes à toa. As dúvidas, acredito ou não? 

Meu único consolo é que se eu fico nesta situação o outro também está. Gostaria que fosse mais fácil, mais direto, que não houvesse tanto desencontro. Aprender a ouvir é uma arte, é escutar o outro e não a si mesmo, é deixar o outro falar e pensar no lugar dele, ter empatia. Toda vez que algo fala em nós é porque é conhecido nosso e isto não garante que seja do outro. Muitas vezes o outro te diz coisas alegando serem suas, mas que na verdade são dele. 

Aprendi a moderar minhas interpretações, procuro pensar e repensar, tentar ver o outro antes de falar algo, mas as vezes quando algo bate em mim arrisco falar, mas informando que foi uma impressão que me ocorreu o que não quer dizer que vá fazer sentido para o outro. 

Há muitos anos atrás fiz um curso de secretária e em uma aula de comunicação o professor disse  algo que nunca esqueci: Nunca diga "é", diga sempre "está", pois o está permite mudança, e o é é assertivo e taxativo. É uma pequena regra que ajuda muito na convivência com o outro. Dizer: você está sendo.... é diferente de dizer você é..... 

Sempre me lembro de algo bem conhecido, em uma esquina ocorre uma batida de carros e há 05 pessoas, e cada uma delas irá contar uma versão diferente. Mais próximo ainda, quando dois irmãos falam de sua mãe eles retratam uma mulher totalmente diferente e que ainda não é a mãe como ela se vê. 

Será que é possível realmente enxergar ao outro? Esta é uma lição de humildade que temos que aprender, e que tem que balizar nossos julgamentos e críticas. O que vemos nem sempre é a realidade.

Neste livro temos esta questão em relação ao enamoramento. Quanta ilusão criamos quando estamos apaixonadas. Vemos coisas de uma maneira que se não fosse o fato de estar apaixonada jamais seriam interpretadas desta maneira. O véu que cobre tudo, o ideal que buscamos, o desejo. O quanto nos submetemos para conseguir realizar o desejo, o quanto deixamos de existir. Um relato cru do apaixonamento.

Mas não fosse toda esta ilusão conseguiríamos nos apaixonar?  alguém que não nos refletisse nos interessaria? ou refletisse o que desejamos para nós? No fundo amamos a nós mesmos, o que somos ou o que gostaríamos de ser. Somente após esta desilusão é que se torna possível amar ao outro, como ele é, com defeitos e qualidades, mas nunca o perfeito que vemos no início. Somos narcisistas e egoístas.

O interessante é tentar se lembrar do que foi que vimos no outro a cada vez que nos apaixonamos. Qual era o traço? o sorriso? o som da voz? o intelectual? a simplicidade? porque isto nos dá uma ideia do que gostaríamos de ser ou do que gostamos em nós. Também buscamos os traços daquele que primeiro amamos, geralmente a mãe.

Nos apaixonamos por um traço só que ele passa despercebido, descobri-lo nos ajuda a vermos melhor o outro. Também temos os traços que nos afastam, e isto também é interessante conhecer. Geralmente o que não gostamos no outro é algo que não gostamos em nós mesmos. Claro, nem sempre é assim, há coisas que repudiamos e não fazem parte de nós, apesar de que é difícil dizer isto, porque até mesmo o lado cruel que repudiamos está em nós, por mais que ele não atue normalmente, há sempre um momento que pode aparecer. Por isto nos deixamos ser afetados quando temos uma relação de afeto com alguém, seja de amor ou de ódio.

domingo, 3 de agosto de 2014

LIVRO - DIÁRIO DO LUTO - sobre o luto


Barthes, Roland. 1ª ed. Editora WMF Martins Fontes, 2011
Tradução: Leyla Perrone-Moisés
264 páginas

Luto - Separação - Perdas 

Barthes escreveu este diário quando sua mãe morreu, de 26 de outubro de 1977, dia seguinte a morte de sua mãe até 15 de Setembro de 1979.

Quando li pela primeira vez o livro minha mãe estava viva. Ao comentar com meu analista sobre esta leitura, se não pareceria lúgubre demais ele me disse que talvez fosse uma forma de eu me preparar para algo que poderia acontecer ou não.

Na segunda vez que li o livro minha mãe havia falecido. Ela tinha insuficiência cardíaca e nos últimos dois anos ela sentiu muito falta de ar, já não conseguia andar muito sem se cansar e passamos a leva-la em uma cadeira de rodas para que pudesse continuar a passear e ir aos lugares que gostava, como o supermercado.

Não é fácil perder a mãe, por mais que se diga que é a lei natural das coisas. Fui eu quem a encontrou em sua cama de manhã. Ela morreu dormindo, e como se diz, foi uma bela morte. De certa maneira atendeu ao meu desejo, eu não queria que ela morresse em um hospital sozinha, queria que fosse em casa. Mas o choque não foi menor apesar do preparo. Sabíamos que poderia acontecer a qualquer momento, já havíamos sido alertados por seu médico desde o início, e ela viveu mais 09 anos. Nos últimos tempos deixamos de nos preocupar com o que ela comia ou fazia, queríamos que ela pudesse fazer o que desejava e ter qualidade de vida. Minha mãe era lúcida e ainda teve a oportunidade de voltar à Bélgica em 2010 numa viagem onde todos nós conhecíamos os riscos, inclusive ela, para rever sua irmã após 30 anos sem se encontrarem. Foi muita emoção. Ela faleceu com 84 anos em 2012. 

Vivi toda minha vida ao lado dela, sou filha única, e mesmo enquanto estive casada ela morava conosco. Não posso afirmar que isto foi fácil ou até mesmo bom, mas eu não consegui me separar dela, toda nossa família estava na Europa e meu pai faleceu quando eu tinha 15 anos. Isto gerou muitos atritos entre nós, mas ao final nos reencontramos e isto foi muito bom.

Difícil foi depois de sua morte. Meu luto foi complicado e talvez por eu saber que seria assim parece que eu estava mesmo me prevenindo quando li Barthes a primeira vez, ainda mais que ele também era filho único e vivia com sua mãe. Para ele não foi nada fácil e muitos dizem que acabou se suicidando, ou melhor, se deixando morrer, após ter sido atropelado. Ele não soube viver sem ela.

Eu aprendi, ainda estou aprendendo. Logo no início ouvi muitas pessoas me dizendo que tinha que tocar a vida, que não fui eu quem morri, que tinha que viver. Porém, eu penso que o luto é algo que deve ser vivido do contrário ele pode se tornar patológico. Os rituais de separação devem ser feitos por mais que demorem. Somente assim conseguimos seguir em frente como tanto me diziam.

Eu não conseguia entrar em seu quarto no início. Mas com a decisão de nos mudarmos da casa onde ela faleceu fui obrigada a enfrentar e não foi nada fácil. Era muito doloroso mexer nas suas coisas. Parecia que eu estava invadindo uma vida, uma privacidade. O cheiro dela ainda estava nas roupas, a bolsa dela foi o mais difícil, e quando o fiz encontrei uma bala melando no fundo da bolsa, um resquício de algo que ela guardou para seu prazer. Retirar suas roupas e doá-las também não foi fácil. Como eu morei a vida toda com ela a casa era praticamente dela, sempre digo que em uma casa só cabe uma mulher para ser a dona dela, as outras moram ali. Meu maior desejo era ter meu canto, minha casa, eu estava com 51 anos, mas o que parecia poder ser a libertação se transformou em algo muito dolorido. Eu não me empolguei com a primeira casa que tive após sua morte. Pelo contrário, parecia que eu brincava de casinha de bonecas, e até a casa parece que escolhi levando em conta tudo isto, ela ficava num buraco e a apelidei de João e Maria pelo seu estilo. Não é possível usufruir uma liberdade em meio a dor, onde esta fruição de liberdade se deve a uma perda.

Não consegui de imediato me desfazer de todas as suas coisas, ainda mais que ela era uma guardadora de coisas. No primeiro momento enviei 08 caixas grandes para doação. E carreguei o restante comigo na mudança.

Quando me dei conta eu decorei a casa no estilo dela, coloquei a louça nos armários da cozinha como ela colocava, e pior, quando eu ia ao mercado comprava as coisas que ela sempre comprava e queria. Comecei a introjetar minha mãe. De repente me senti ali enterrada com meus pais. Eu havia passado por uma depressão grave em 2011, como nunca pensei que fosse possível. Descobri a diferença entre a tristeza e a depressão. Fui tratada por um psicanalista, um psiquiatra e uma terapeuta e nada disto tudo resolveu alguma coisa naquele momento. Mas falarei disto em outro momento. Em 2012 quando minha mãe faleceu eu acabava de sair desta depressão e estava retomando o gosto pela vida.

Mas frente a tudo isto percebi que recomeçava a afundar. Eu não tinha mais ânimo, nenhum desejo, não sabia o que eu queria e o que poderia fazer. Não cheguei a arrumar a casa toda, muito ficou em caixas. Foi então que meus filhos percebendo tudo isto propuseram que eu me mudasse para outro lugar. Jurei para eu mesma que encontraria uma casa que tivesse a minha cara e foi o que aconteceu. Mudei-me para outra cidade menor do que a capital onde eu vivia, dentro de um condomínio de casas assim teria segurança vivendo sozinha e entorno mais acolhedor. Era um risco, eu sabia, ou dava certo ou eu afundaria na solidão de vez, mas deu certo.

Esta casa é gostosa, arejada, clara e tem a minha cara, com varandas na frente e atrás, um jardim e quintal, janelas de madeira, venezianas, tudo que eu gosto. Minha labradora tem espaço e pode ver pessoas novamente, pois na outra casa além de tudo havia um murro enorme e cinza em torno que não permitia ver a rua. Neste processo todo adotei uma cachorrinha que foi abandonada, e sempre digo que ela é meu anti-depressivo, pois é muito alegre e levada. E foi nesta casa que consegui finalizar e me desfazer de muitas coisas de minha mãe. Escolhi as que eu realmente queria para guardar, o que realmente me agradava e que também fazia parte de minha história, como alguns quadros, enfeites, e o restante doei.

Comecei lentamente a trocar a louça e a roupa de mesa e banho. E comecei a comprar enfeites e coisas para a casa que tivessem minha cara. Isto me salvou. Adoro o lugar e a casa onde moro. Mas não foi fácil, e durou mais de um ano tudo isto.

Troquei as fotos dos porta-retratos por fotos minhas e de meus filhos e neto. Só tenho uma foto dela na casa. Comecei a ouvir música e fui me apoderando da casa o que era novidade para mim. Eu considerava meu quarto o meu espaço, e se apoderar do restante da casa foi um processo lento também. Comecei a cozinhar coisas que eu gosto e tive que aprender a diminuir as quantidades, a comprar os produtos que eu gosto e uso. Mudei a disposição das coisas nos armários de cozinha, e pude colocar coisas que antes ficavam guardadas. Eu pensava: quando meus pais vieram da Europa para cá trouxeram algumas poucas peças de seus pais como lembrança, pois então é o que eu vou fazer também, guardar algumas poucas peças.

A única coisa que ainda não me acostumei é a comer sozinha na mesa. É muito triste isto e então opto por comer assistindo um filme, assim tem vozes. O próprio Barthes em outro livro dele " O rumor da língua" diz que "A conversação(em grupo) é de certo modo a lei que protege o prazer culinário de qualquer risco psicótico e mantém o gastrônomo numa 'sã' racionalidade: ao falar - ao tagarelar- enquanto come, o conviva confirma o seu eu e protege-se contra qualquer fuga subjetiva pelo imaginário do discurso." (citado in: Garcia, Carla Cristina. Hambre del Alma. Limiar, 2007). Muitas vezes quando eu comia sozinha era o momento onde eu mais percebia o vazio e a solidão, olhava para o sofá onde minha mãe costumava ficar e aquilo era terrível, eu sentia algo muito doloroso em mim. Pelo menos quando assisto a um filme ouço vozes, e não sinto este vazio. 

Minha mãe foi cremada conforme seu desejo, e isto resultou numa situação complicada. Ela nunca disse onde gostaria que suas cinzas fossem jogadas ou colocadas, então eu tomei a decisão que iria levar a urna com suas cinzas para colocar junto ao meu pai. Ocorre que meu pai está enterrado em outra cidade em outro Estado e levou dois meses para poder levar a urna. A urna na casa acabou causando algo ruim, era um morto insepulto. Não era o lugar certo e senti isto na pele. Como disse meu analista na época, também era um velório muito longo. Depois que cumpri este ritual me senti melhor.

Também convivemos com os fantasmas durante um tempo, e não se trata de alucinação ou delírio. Faz parte do processo de luto, ainda mais quando é um luto que está sendo vivido de forma solitária. Eu ouvia a voz de minha mãe, sentia o cheiro dela, acordava com barulhos como se fosse ela, e quando mexia em suas coisas parecia que ela me jogava as coisas na cabeça, eu me machucava, as coisas caíam no chão.

Um ponto que Barthes levanta é sobre o fato do filho que cuida da mãe. Ora! é uma inversão de papéis, o filho passa a ser uma mãe. Então a perda é como perder um filho, e ista é a perda mais dolorosa que existe. Eu passei por isto e me aconteceu de dizer ao médico de minha mãe ao telefone que era a mãe dela que estava falando, um lapso que dizia como eu me sentia. Nos dois últimos anos meu maior medo era sair e chegar em casa e encontrá-la morta. Não foi assim, mas ainda assim a encontrei morta de manhã, numa posição muito serena, ela partiu dormindo, nem se deu conta.

O luto nunca acaba, mas aos poucos vamos vivendo e se separando da pessoa amada que perdemos. Vamos recriando a vida e construindo novas formas de viver. E ler livros sobre o assunto ou assistir filmes nos ajuda e muito, pois é uma forma de compartilhar de uma dor e percebermos que todos perdem entes queridos e amados e que temos que passar por isto em algum momento. Mais tarde li A História de uma viúva onde Joyce Carol Oates também fala da perda de seu marido e do processo de luto. Falarei deste livro também mais adiante, porque há um momento que sentimos raiva e isto tem que ser aceito e expressado, mesmo que todos achem isto um absurdo, não importa, é necessário colocar para fora. 


Oates, Joyce Carol. Objetiva, 2013 - Selo Alfaguara
Tradução: Débora Landsberg
453 páginas
Título original: A Widow's Story

JOSÉ E PILAR - FILME E LIVRO - POSSO FALAR O QUE PENSO


  A relação com o outro - O Sujeito 

O Filme documentário José e Pilar e o livro Conversas Inéditas José e Pilar ambos de Miguel Gonçalves Mendes.


Li primeiro o livro e depois assisti ao documentário. Confesso que aprecio mais o livro, pois ele trata de coisas mais pessoais do que o documentário que me lembrou muito Cadernos de Lanzarote escrito por Saramago onde ele fala muito de sua vida profissional como escritor. Na realidade ambos se complementam.


Pilar del Rio  é uma mulher vibrante, forte,racional, extraordinária, não tem medo de dizer o que pensa sobre um assunto, mesmo quando discorda de Saramago. E há o amor que une estes dois, belo, generoso, maduro. Ambos são engajados nas questões do mundo o que hoje em dia falta muito.

Pilar conheceu Saramago quando ele já tinha 63 anos e ela 36 anos , e este é o primeiro ensinamento, não há idade para o amor e para o desejo. Nos iludimos buscando alguém muitas vezes por achá-lo bonito ou jovem, e isto é um dado cultural que privilegia a beleza e o corpo e não o que esta pessoa é e o que pode nos ofertar generosamente de si mesma. Saramago se questionou sobre isto, mas não o impediu de se entregar ao amor desta mulher e acreditar nele e no que sentia.

Mudaram-se para as Ilhas Canárias, Lanzarote onde construíram sua casa e a biblioteca. As bibliotecas normalmente mexem muito comigo, eu amo uma biblioteca e tudo que ela transmite. Quando sinto a ansiedade tomar conta de mim procuro uma livraria, uma biblioteca, e me acalmo. Estou acolhida, estou entre amigos, e há algo dentro de mim que me guia diretamente para o livro que preciso naquele momento. Eu vejo um livro, alguém me mostra um livro, algo me atrai diretamente para ele, não preciso ficar procurando. É um namoro, um caso de amor também esta minha relação com os livros.

O cenário em torno da casa, as montanhas, uma ilha vulcânica. Saramago se propõe o desafio de subir a montanha e o consegue. Quantas vezes dizemos que não temos mais idade para algo, não vamos conseguir e nem tentamos? Em 2009 fui para Florianópolis nas férias e junto com uma grande amiga fomos para a praia dos Naufragados. Esta praia só se tem acesso pela trilha ou por barco, e resolvemos ir pela trilha, um dia após um temporal e portanto havia muita lama. Para chegar a praia era preciso subir e descer um morro, e nem por um momento hesitei. Não foi fácil, mas consegui, e chegar à praia foi uma vitória, correr até o mar para tirar o barro esfregando com areia e água, foi muito bom. São nas pequenas coisas que está a alegria de viver, ou como se diz na França: la joie de vivre. Este episódio me deu duas coisas: uma alegria interna que veio de vencer o desafio e perceber que é possível, não na mesma velocidade de antes, mas é possível, e andar pela mata, atravessar um riacho, dar de cara com uma cachoeira, os sons, os cheiros, eu teria perdido tudo isto se não tivesse ido e isto vem do externo, da beleza natural.

Pilar e Saramago nos falam da vida, da morte, de Deus, da política, da religião, do mundo e deles. Pilar nos diz que a morte é algo já conquistado, a vida não, esta é necessário conquistar a cada dia. Temos medo de morrer, mas na verdade o que temos realmente é medo de viver. Morrer vamos de qualquer maneira, então por que temer? todos irão morrer, mas viver, quantos de nós realmente vivemos?

A liberdade de falar, de dizer o que realmente se pensa. Que importa o que os outros irão pensar? por que nos deixamos afetar tanto pela opinião dos outros? Porque ficamos presos a esta demanda de agradar ao outro e ao desejo de sermos amados? E neste caso ser amado não seria ser o ideal do outro aos seus olhos? e não nós mesmos? Em vários momentos Pilar e Saramago tem pensamentos diferentes, mas isto não os afasta, pelo contrário, os aproxima.

Por outro lado fiquei pensando no fato de Pilar passar a dedicar sua vida à Saramago. Ela é uma jornalista, mas foi com ele e passou a cuidar de sua agenda, fazia traduções de seus livros, organizou a biblioteca. Pode parecer num primeiro momento que ela abre mão de sua vida em prol da dele, mas será isto? As vezes precisamos ocupar este lugar que não tem proeminência, existimos sim através do outro também.

O mais importante para mim neste livro foi que como tenho muitas dificuldades em falar o que penso comecei a perceber que isto é possível, sem que com isto o outro deixe de gostar de mim, e se por acaso isto acontecer é porque não era para ser algo bom.

Mas é apenas o primeiro passo neste aprendizado de crescer.

Mendes, Miguel Gonçalves. Companhia das Letras, 2012
Tradução: Rosa Freire D'Aguiar
224 páginas.

Assista ao documentário: https://www.youtube.com/watch?v=iesonOSVTBQ

Direção: Miguel Gonçalves Mendes - 2010 
Duração: 125 min