segunda-feira, 3 de novembro de 2014

LIVRO: A ORIGEM DO MUNDO - o que move o nosso desejo?



O que move nosso desejo?

Edwards, Jorge. Cosac Naify, 2014
158 páginas
Tradução: José Rubens Siqueira
Título original: El origen del mundo

Este livro é impactante, brilhante. Ele vai nos falar do ciúme, mas vai muito além disto. A velhice, o desejo, a fantasia que nos permite viver.

Gustave Courbet pintou em 1866 o quadro "A origem do mundo", uma mulher com o rosto velado, de pernas abertas com sua vulva aparecendo. O quadro foi encomendado por um bei da Turquia. Pertenceu a Jacques Lacan, o psicanalista francês, e depois foi exposto no Musée D'Orsay em Paris.

Patrício Illanes é um médico setentão casado com Silvia, chilenos que se exilaram em Paris, assim como seu amigo Felipe Díaz. E tudo começa quando Patrício e Silvia vão a exposição do quadro "A origem do mundo", onde Patito pensa que ele se parece com sua mulher. Na sequência dos acontecimentos temos o suicídio de Felipe Díaz, outro exilado, mas não sem antes haver um encontro entre este e Patito num café onde Felipe lhe fala de uma mulher filósofa, mexicana-japonesa, e de que acabou trocando um garrafa por uma mulher. Felipe bebia muito. Quando Silvia vê Felipe morto tem uma reação histérica que surpreende Patito e parece lhe confirmar suas suspeitas de que ambos eram amantes. A partir daí temos o relato neurótico de Patito em busca das provas desta traição.

O delírio de Patito em busca das provas da traição é algo que nos incomoda, mas porque? quando sentimos ciúmes ficamos cegos, e de certa maneira gozamos deste sofrimento. Somos nós mesmos que criamos o ciúme e ele nos encarcera. Claro, às vezes realmente pegamos o ser amado com outra pessoa e de fato ele ou ela está nos deixando, mas na maioria das vezes o ciúme é fruto da insegurança, da dúvida, mas é mais que isto, é uma forma de gozar com dor, de como diz o ditado popular: procurar chifres em cabeça de cavalo. Não devemos desprezar o que sentimos quando surge uma dúvida ou suspeita, mas devemos aprender a não nos deixar prender por este ciúme que leva à loucura, a dor. Diante de uma dúvida, nada melhor que que colocar as coisas a limpo com a pessoa envolvida. Obviamente o outro pode mentir, ocultar. Mas o que fica mais evidente diante do ciúme é a cegueira que nos oblitera o pensamento e os atos. Como no livro A mulher perdida, que já postei. Negar a realidade e procurar o que desejamos encontrar para gozar ou nos fazer de vítima, também para gozar este estado.

Se pararmos para perceber o que fazemos diante do ciúme veremos o quão patéticos somos, e por isto nos incomoda assistir ao delírio de Patrício. Também podemos nos unir a ele e ficar com raiva dos outros, mas isto também é doentio. A impressão que ele tem que todos o estão enganando, não querem lhe dizer a verdade, mas o que é a verdade neste caso? Todos declaram que nunca viram nada nem ouviram falar de nada e se irritam com a insistência dele. Claro, ele os está desacreditando e isto os incomoda. Então porque pergunta? se não acredita em mim?

Mesmo diante da realidade que não condiz com o que desejamos, que é ser traídos para gozar, vamos encontrar outros motivos. Supondo que ele siga a mulher pensando que vai se encontrar com alguém, e ela simplesmente vai ao cabeleireiro. Ele então vai supor que está se enfeitando para o outro. E assim feito um círculo vicioso para atender ao seu próprio desejo, e se manter preso dentro deste sofrimento. Muitas vezes ao descobrir de fato a traição o sujeito então cai na real e se afasta triste e calado. Acabou! ele que tanto desejava pegar no flagra agora tem que tomar uma decisão, e ele sabe que talvez não sirva de nada saber e dizer o que viu para manter o ser amado com ele, pelo contrário, é o momento da decisão. O jogo acabou.
Outros não suportam e passam ao ato. Matam. Para manter o ser amado junto a si para sempre, num túmulo e tirá-lo do outro.

Mas aqui nesta história o caso não é este. E isto torna o livro mais brilhante. Ele vai mais fundo. O ciúme é apenas um lado da questão. Patito tem setenta anos, sua esposa é mais jovem, ele enfrenta a questão do desejo. No livro da Gabriel García Marquez - Memória de minhas putas tristes, também vemos alguém na velhice se defrontando com o desejo e a sexualidade.

Quando olha para a pintura algo desperta dentro dele. Sua vida sexual já não é como foi. Ele precisa criar algo para que ela se mantenha, mas não tem consciência disto. O que se despertou foi a fantasia sexual. Ele vê Felipe Díaz chegar ao fim de sua vida sexual trocando a mulher por uma garrafa. Mas também passou a vida ouvindo sobre a vida sexual movimentada do amigo, e nisto inclui sua mulher.

A fantasia inconsciente, o desejo, a paixão, o sexo e o erotismo, a fantasmagoria, tudo isto está neste livro e descrito de uma maneira esplêndida. O quadro A origem do mundo também pode ser interpretado como de onde nascemos, de onde viemos, e a velhice é o fim, e não é um retorno ao paraíso, mas é o nada, o vazio, o não conhecido que assusta. Somente com a ficção ou a fantasia, ou a imaginação, se pode lidar com a morte, e a velhice é o momento onde isto vai surgir fortemente, este medo da morte e a consciência que estamos muito longe desta origem. Patito prefere a ilusão do que a morte, prefere o amor-paixão que reaviva o desejo, e o que mais é a vida do que o desejo? ele nos movimenta. Quando o desejo cessa, estamos mortos.

Felipe Díaz não suportou e preferiu morrer, Patito optou pela vida, mesmo  sofrendo, mas quem sofre está vivo. Ambos sofreram a frustração de seus ideais políticos, ambos tiveram que sair de seu país e se exilarem, e sabiam que mesmo depois de tudo ter passado, não seria mais possível voltar ao seu país, não se identificariam mais com este lugar que ficou no passado. Se esta origem não lhes permitia viver, então porque não a origem da vida? o sexo e todo seu lado erótico.

Na velhice o erótico já não é como antes, e para não cair num sexo carne, animal, a fantasia e a ficção vem para sanar isto. Não é mais o belo corpo, mas a fantasia.

O que mais me encantou neste livro foi isto, expor a fantasmagoria que nos move o desejo. A falta, o buraco, o vazio que precisamos preencher de alguma maneira e que nunca conseguimos, restando rodeá-lo de alguma maneira. Muitas vezes somos pudicos com nossas fantasias, e elas atuam sem que as reconheçamos. Patito teve que criar todo o cenário do ciúme para chegar ao que desejava, uma noite erótica com sua mulher como antes, para com isto se sentir vivo, mesmo na velhice onde a morte se aproxima. Ele luta pela vida.

Felipe optou pela bebida e a morte. Outros preferem comer e com isto engordam. Mas penso que Patito escolheu o melhor caminho, por mais estranho que possa parecer. Claro, que ele teve a sorte de que sua esposa percebeu e entrou junto nisto.

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