domingo, 3 de agosto de 2014

LIVRO - DIÁRIO DO LUTO - sobre o luto


Barthes, Roland. 1ª ed. Editora WMF Martins Fontes, 2011
Tradução: Leyla Perrone-Moisés
264 páginas

Luto - Separação - Perdas 

Barthes escreveu este diário quando sua mãe morreu, de 26 de outubro de 1977, dia seguinte a morte de sua mãe até 15 de Setembro de 1979.

Quando li pela primeira vez o livro minha mãe estava viva. Ao comentar com meu analista sobre esta leitura, se não pareceria lúgubre demais ele me disse que talvez fosse uma forma de eu me preparar para algo que poderia acontecer ou não.

Na segunda vez que li o livro minha mãe havia falecido. Ela tinha insuficiência cardíaca e nos últimos dois anos ela sentiu muito falta de ar, já não conseguia andar muito sem se cansar e passamos a leva-la em uma cadeira de rodas para que pudesse continuar a passear e ir aos lugares que gostava, como o supermercado.

Não é fácil perder a mãe, por mais que se diga que é a lei natural das coisas. Fui eu quem a encontrou em sua cama de manhã. Ela morreu dormindo, e como se diz, foi uma bela morte. De certa maneira atendeu ao meu desejo, eu não queria que ela morresse em um hospital sozinha, queria que fosse em casa. Mas o choque não foi menor apesar do preparo. Sabíamos que poderia acontecer a qualquer momento, já havíamos sido alertados por seu médico desde o início, e ela viveu mais 09 anos. Nos últimos tempos deixamos de nos preocupar com o que ela comia ou fazia, queríamos que ela pudesse fazer o que desejava e ter qualidade de vida. Minha mãe era lúcida e ainda teve a oportunidade de voltar à Bélgica em 2010 numa viagem onde todos nós conhecíamos os riscos, inclusive ela, para rever sua irmã após 30 anos sem se encontrarem. Foi muita emoção. Ela faleceu com 84 anos em 2012. 

Vivi toda minha vida ao lado dela, sou filha única, e mesmo enquanto estive casada ela morava conosco. Não posso afirmar que isto foi fácil ou até mesmo bom, mas eu não consegui me separar dela, toda nossa família estava na Europa e meu pai faleceu quando eu tinha 15 anos. Isto gerou muitos atritos entre nós, mas ao final nos reencontramos e isto foi muito bom.

Difícil foi depois de sua morte. Meu luto foi complicado e talvez por eu saber que seria assim parece que eu estava mesmo me prevenindo quando li Barthes a primeira vez, ainda mais que ele também era filho único e vivia com sua mãe. Para ele não foi nada fácil e muitos dizem que acabou se suicidando, ou melhor, se deixando morrer, após ter sido atropelado. Ele não soube viver sem ela.

Eu aprendi, ainda estou aprendendo. Logo no início ouvi muitas pessoas me dizendo que tinha que tocar a vida, que não fui eu quem morri, que tinha que viver. Porém, eu penso que o luto é algo que deve ser vivido do contrário ele pode se tornar patológico. Os rituais de separação devem ser feitos por mais que demorem. Somente assim conseguimos seguir em frente como tanto me diziam.

Eu não conseguia entrar em seu quarto no início. Mas com a decisão de nos mudarmos da casa onde ela faleceu fui obrigada a enfrentar e não foi nada fácil. Era muito doloroso mexer nas suas coisas. Parecia que eu estava invadindo uma vida, uma privacidade. O cheiro dela ainda estava nas roupas, a bolsa dela foi o mais difícil, e quando o fiz encontrei uma bala melando no fundo da bolsa, um resquício de algo que ela guardou para seu prazer. Retirar suas roupas e doá-las também não foi fácil. Como eu morei a vida toda com ela a casa era praticamente dela, sempre digo que em uma casa só cabe uma mulher para ser a dona dela, as outras moram ali. Meu maior desejo era ter meu canto, minha casa, eu estava com 51 anos, mas o que parecia poder ser a libertação se transformou em algo muito dolorido. Eu não me empolguei com a primeira casa que tive após sua morte. Pelo contrário, parecia que eu brincava de casinha de bonecas, e até a casa parece que escolhi levando em conta tudo isto, ela ficava num buraco e a apelidei de João e Maria pelo seu estilo. Não é possível usufruir uma liberdade em meio a dor, onde esta fruição de liberdade se deve a uma perda.

Não consegui de imediato me desfazer de todas as suas coisas, ainda mais que ela era uma guardadora de coisas. No primeiro momento enviei 08 caixas grandes para doação. E carreguei o restante comigo na mudança.

Quando me dei conta eu decorei a casa no estilo dela, coloquei a louça nos armários da cozinha como ela colocava, e pior, quando eu ia ao mercado comprava as coisas que ela sempre comprava e queria. Comecei a introjetar minha mãe. De repente me senti ali enterrada com meus pais. Eu havia passado por uma depressão grave em 2011, como nunca pensei que fosse possível. Descobri a diferença entre a tristeza e a depressão. Fui tratada por um psicanalista, um psiquiatra e uma terapeuta e nada disto tudo resolveu alguma coisa naquele momento. Mas falarei disto em outro momento. Em 2012 quando minha mãe faleceu eu acabava de sair desta depressão e estava retomando o gosto pela vida.

Mas frente a tudo isto percebi que recomeçava a afundar. Eu não tinha mais ânimo, nenhum desejo, não sabia o que eu queria e o que poderia fazer. Não cheguei a arrumar a casa toda, muito ficou em caixas. Foi então que meus filhos percebendo tudo isto propuseram que eu me mudasse para outro lugar. Jurei para eu mesma que encontraria uma casa que tivesse a minha cara e foi o que aconteceu. Mudei-me para outra cidade menor do que a capital onde eu vivia, dentro de um condomínio de casas assim teria segurança vivendo sozinha e entorno mais acolhedor. Era um risco, eu sabia, ou dava certo ou eu afundaria na solidão de vez, mas deu certo.

Esta casa é gostosa, arejada, clara e tem a minha cara, com varandas na frente e atrás, um jardim e quintal, janelas de madeira, venezianas, tudo que eu gosto. Minha labradora tem espaço e pode ver pessoas novamente, pois na outra casa além de tudo havia um murro enorme e cinza em torno que não permitia ver a rua. Neste processo todo adotei uma cachorrinha que foi abandonada, e sempre digo que ela é meu anti-depressivo, pois é muito alegre e levada. E foi nesta casa que consegui finalizar e me desfazer de muitas coisas de minha mãe. Escolhi as que eu realmente queria para guardar, o que realmente me agradava e que também fazia parte de minha história, como alguns quadros, enfeites, e o restante doei.

Comecei lentamente a trocar a louça e a roupa de mesa e banho. E comecei a comprar enfeites e coisas para a casa que tivessem minha cara. Isto me salvou. Adoro o lugar e a casa onde moro. Mas não foi fácil, e durou mais de um ano tudo isto.

Troquei as fotos dos porta-retratos por fotos minhas e de meus filhos e neto. Só tenho uma foto dela na casa. Comecei a ouvir música e fui me apoderando da casa o que era novidade para mim. Eu considerava meu quarto o meu espaço, e se apoderar do restante da casa foi um processo lento também. Comecei a cozinhar coisas que eu gosto e tive que aprender a diminuir as quantidades, a comprar os produtos que eu gosto e uso. Mudei a disposição das coisas nos armários de cozinha, e pude colocar coisas que antes ficavam guardadas. Eu pensava: quando meus pais vieram da Europa para cá trouxeram algumas poucas peças de seus pais como lembrança, pois então é o que eu vou fazer também, guardar algumas poucas peças.

A única coisa que ainda não me acostumei é a comer sozinha na mesa. É muito triste isto e então opto por comer assistindo um filme, assim tem vozes. O próprio Barthes em outro livro dele " O rumor da língua" diz que "A conversação(em grupo) é de certo modo a lei que protege o prazer culinário de qualquer risco psicótico e mantém o gastrônomo numa 'sã' racionalidade: ao falar - ao tagarelar- enquanto come, o conviva confirma o seu eu e protege-se contra qualquer fuga subjetiva pelo imaginário do discurso." (citado in: Garcia, Carla Cristina. Hambre del Alma. Limiar, 2007). Muitas vezes quando eu comia sozinha era o momento onde eu mais percebia o vazio e a solidão, olhava para o sofá onde minha mãe costumava ficar e aquilo era terrível, eu sentia algo muito doloroso em mim. Pelo menos quando assisto a um filme ouço vozes, e não sinto este vazio. 

Minha mãe foi cremada conforme seu desejo, e isto resultou numa situação complicada. Ela nunca disse onde gostaria que suas cinzas fossem jogadas ou colocadas, então eu tomei a decisão que iria levar a urna com suas cinzas para colocar junto ao meu pai. Ocorre que meu pai está enterrado em outra cidade em outro Estado e levou dois meses para poder levar a urna. A urna na casa acabou causando algo ruim, era um morto insepulto. Não era o lugar certo e senti isto na pele. Como disse meu analista na época, também era um velório muito longo. Depois que cumpri este ritual me senti melhor.

Também convivemos com os fantasmas durante um tempo, e não se trata de alucinação ou delírio. Faz parte do processo de luto, ainda mais quando é um luto que está sendo vivido de forma solitária. Eu ouvia a voz de minha mãe, sentia o cheiro dela, acordava com barulhos como se fosse ela, e quando mexia em suas coisas parecia que ela me jogava as coisas na cabeça, eu me machucava, as coisas caíam no chão.

Um ponto que Barthes levanta é sobre o fato do filho que cuida da mãe. Ora! é uma inversão de papéis, o filho passa a ser uma mãe. Então a perda é como perder um filho, e ista é a perda mais dolorosa que existe. Eu passei por isto e me aconteceu de dizer ao médico de minha mãe ao telefone que era a mãe dela que estava falando, um lapso que dizia como eu me sentia. Nos dois últimos anos meu maior medo era sair e chegar em casa e encontrá-la morta. Não foi assim, mas ainda assim a encontrei morta de manhã, numa posição muito serena, ela partiu dormindo, nem se deu conta.

O luto nunca acaba, mas aos poucos vamos vivendo e se separando da pessoa amada que perdemos. Vamos recriando a vida e construindo novas formas de viver. E ler livros sobre o assunto ou assistir filmes nos ajuda e muito, pois é uma forma de compartilhar de uma dor e percebermos que todos perdem entes queridos e amados e que temos que passar por isto em algum momento. Mais tarde li A História de uma viúva onde Joyce Carol Oates também fala da perda de seu marido e do processo de luto. Falarei deste livro também mais adiante, porque há um momento que sentimos raiva e isto tem que ser aceito e expressado, mesmo que todos achem isto um absurdo, não importa, é necessário colocar para fora. 


Oates, Joyce Carol. Objetiva, 2013 - Selo Alfaguara
Tradução: Débora Landsberg
453 páginas
Título original: A Widow's Story

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